“Ser feliz é
sorte e a parceira morte não diz onde está você”. A morte é uma parceira constante, capaz de
fazer versos fantásticos. Sempre que preciso escrever algo e tanto a inspiração
quanto a transpiração negam o ar da graça, procuro minha mesa no quintal, sirvo-me
de minha branquinha (que de fato é amarelinha) e puxo a outro cadeira para que
minha morte possa se sentar. A morte não bebe, disse-me que esse hábito não faz
bem a saúde.
Segundo Dom
Juan, personagem de Carlos Castanheda, ela está sempre ao nosso lado esquerdo,
e em dias de descuido, — porque tudo no mundo do além túmulo não é muito
preciso —, podemos vê-la com um olhar de esguela (com o canto dos olhos), mas é
coisa rápida. Dá pra ver a roupa preta e, com um pouco de sorte, a ponta da
gadanha; ela é prateada. A foice da morte nunca derramou uma gota de sangue,
quando ela toca num corpo inanimado, o sangue já está paralizado.
Foi ela que me
ensinou, através de Singer, que um cadáver é poderoso por demais. Já não
responde mais às palavras, não precisa mais obedecer ninguém nessa terra de
ninguém e está livre da alma; não vai nem pro inferno e nem pro céu. Apenas
transformar-se-á, porque nada se perde no universo de Lavoisier. — Acho a
palavra transformar-se-á uma das mais belas esculturas da língua
portuguesa, o futuro do presente, que é a morte.
Aquele corpo
inerte amedronta aos outros que estão vivos; inspira o silêncio. Quem tem medo
do silêncio não deveria morrer, não deveria se aventurar nessa partitura de
jazz praticamente ilegível. Cercamos nossos cadáveres de flores, na esperança
de que a morte seja um jardim, onde possamos brincar com velocípedes e cantar
canções de roda. Mas é tudo um profundo silêncio, não somos mais um ser em ato. Só memória em potencial. Passamos
a ‘ser algo que só poderia ter sido’.
Nosso corpo é
dotado de uma irracionalidade profunda. Vem apodrecendo de fora pra dentro,
somos observadores privilegiados da contínua ‘cadaverização’ de nossos corpos,
nossas jangadas. O cabelo branco, o ranger das juntas, a secura dos olhos, o
afinamento das pernas, as varizes, a miopia, a próstata... ah! a bendita
próstata, guardiã do veículo líquido do prazer que, independente da idade, quer
continuar com seus portais abertos, mas o sangue não ajuda, não circula, as
veias perdem a elasticidade dia-a-dia; num paradoxo, a conseqüência disso é a ausência
de firmeza.
E o amor, onde
entra nessa ópera bem ao estilo dos irmãos Marx? Enquanto eu descrevia meu
exuberante trajeto decante corporal, minha morte era só sorrisos. Há um toque
de humor negro nesse projeto que nos permite criaturas de carne. Mas podemos
vencer o sadismo da vida quando olhamos nos olhos de quem se ama, tão
profundamente, a ponto de entendermos que somos capazes de escrever um soneto,
uma canção, dar luz a um desenho, ou dar formas a uma escultura. Sentimos algo
que os deuses não podem sentir. É por isso não podemos explicar o amor, se o
fizermos, os deuses tomaram conta dele.
“Porque é fogo
que arde sem se ver” que o amor se torna misterioso. O coração humano é a
caixinha de Pandora dos deuses, no frágil momento em que ela se abre, quando
somos tocados pela morte, eles desejam profundamente capturar os vapores que
emanam dele, um perfume a ser guardado num frasco para se usar a bel prazer. Mas
o amor sempre trai aos deuses.
Freddie
Mercury escreveu, numa das mais belas canções do rock, Bhoemia Rhapsody: “Mama,
matei um homem. A vida mal havia começado, mas puxei o gatilho”. O homem morto era ele mesmo. Matou a si mesmo
sem sair da vida, sacrificou o que havia dentro da sua própria ‘moral zoroastra’
(deuses não podem fazer isso). Termina a canção dizendo que: “Belzebu é um
demônio que vive e existe somente pra mim... e que realmente nada importa. Pra
qualquer lado que o vento soprar”. Ao se matar metaforicamente, Mercury
antecipou toda a degeneração implícita ao animal racional universal e tornou-se
livre para amar, ou pelo menos tentar amar e ser amado.
Pra quem não
sabe, minha morte tem a voz de Baddy Guy no blues ‘living a proof’. Não conhece?
Pô, já existe you tube!