terça-feira, 16 de setembro de 2014

Contos absurdos: O doce canto da liberdade

                     


O rei de uma terra distante havia conseguido a mão de uma bela princesa. O casamento fora festivo, mas os olhos da noiva, agora que se tornara uma rainha, eram tristes. Foi levada ao seu novo reino por um cortejo dourado. O castelo de seu esposo era cercado por florestas e todo o vilarejo se ajoelhou para a passagem dos nobres. Mas à noite, a rainha disse que não poderia se deitar com o rei, tinha os nervos abalados, precisava adormecer profundamente. Dessa forma, necessitava urgentemente de silêncio. É que sem descanso, não poderia desposá-lo.
Noutro dia, feito um cavalo puro sangue na ponta dos cascos, o rei ordenou que todo o castelo ficasse em silêncio, a rainha precisava dormir para que ele pudesse ter sua lua-de-mel. Fez-se um silêncio nas entranhas de pedra. Mas a rainha disse que só no castelo o silêncio era pouco, os pássaros na floresta não a deixavam dormir, principalmente à noite.
Assim foi dada outra ordem: que todos os pássaros fossem mortos, caçados, vendidos, exilados, mandados para terras distantes, o sono da rainha não poderia ser atrapalhado. Mas ainda não foi o suficiente, a rainha disse que o barulho do vilarejo, agora com tanto silêncio no castelo e na floresta, produzia um ‘zum-zum-zum’ forte por demais que não a deixava dormir. O rei era implacável e não desistia.
"Um guarda em cada porta, se preciso for, para manter o silêncio!', ordenou o rei para que a princesa pudesse dormir e ele, dessa forma, pudesse vir a amá-la. O rei era um homem forte, seu peito era peludo, sua barriga pronunciava uma farta alimentação de carne. Seu hálito misturava faisão, vinho, cerveja e pimenta. Seu pai fora um rei viking. Por isso, talvez, a princesa, segundo diziam as mulheres da corte, estava retardando por demais as núpcias.
Em segredo a rainha sentia-se enojada toda vez que via o rei. Queria algo mais carinhoso, mais singelo, que lhe tocasse a pele como o vento da manhã, como a delicadeza da água da floresta, igual à maciez dos lençóis de seda.
'Controlado' o vilarejo, o rei perguntou se agora havia silêncio o suficiente no reino para que ela pudesse se deitar, finalmente, com ele. Ainda não! Agora era o vento nas folhagens que produziam barulho. Parecia um chocalho gigante, ela precisava de silêncio senão não poderia entregar-lhe o corpo branco como o leite, os cabelos claros como o trigo, os seios duros e pontudos e apontados pro céu. Só de imaginar o rei entrou em ebulição. Mandou cortar as árvores ao redor do castelo, queria uma clareira de quilômetros para que a rainha não ouvisse mais o barulho do vento nas folhagens.
Após as árvores cortadas, o silêncio era tão profundo que muitos habitantes do reino entraram em depressão. Alguns cometeram suicídio. O rei, orgulhoso de sua obra, postou-se diante de sua rainha e queria saber se agora poderiam se amar. A rainha disse que quase tudo estava bom, mas ela ainda ouvia o coração dele ecoando dentro do peito. Aquele Tum! Tum! Tum! era sufocante. O rei deveria procurar um feiticeiro, um que a rainha trouxera de seu antigo reino, e que fora alojado nos porões do castelo. Ele conhecia uma poção que fazia o coração bater sem fazer barulho.
O rei desceu as escadas com toda a sofreguidão do mundo. Deu ordens ao feiticeiro que lhe desse a poção. Nem quis ouvir sobre o fato de que nunca tinha sido experimentada. Que aquela fosse a primeira e não se falava mais no assunto. Com o frasco nas mãos, o rei subiu as escadas e de joelhos, diante de sua rainha, tomou a poção. Depois se deitou na cama e indicou o peito, o coração agora não fazia mais barulho.
A rainha, agora sim, disse que havia silêncio o suficiente. Só então o rei entendeu que estava prestes a morrer. Sentiu uma dor extrema no peito e fechou os olhos. A última imagem que levou do mundo foi a do rosto de sua rainha. Ela estava sorrindo, rodeada por um silêncio profundo. 
Com o rei morto, a rainha desceu as escadas, chegou até as baias e pegou o melhor cavalo. Cruzou todo reino de seu falecido esposo e, depois de dias cavalgando solitariamente, parou diante de uma cachoeira no meio de uma distante floresta. Um trovador a esperava com o violão em mãos. Ela jogou fora a coroa que tinha e ele cantou pra ela uma canção antiga. Ficaram olhando as estrelas, sentados nas pedras, e em meio ao canto dos pássaros noturnos. Até que de repente, ele a beijou nos lábios e a tocou sob o vestido. Havia uma leve música no mundo todo. Podia-se ouvir os corações dos dois. Acelerados e na mesma frequência.