quarta-feira, 11 de março de 2015

Luc is myself

Julio Cortázar 

Luc é um menino, um personagem de um conto de Julio Cortázar, a Flor Amarela. Uma estranha história de um estranho contista pra seus bizarros leitores. Cortázar nos revela, em sua obra, os estados sombrios da vida humana nos trâmites mais comuns do cotidiano. Deveras, é assim a atmosfera misteriosa desse conto abissal.
Tudo gira em torno de um homem comum que se encontra consigo mesmo num ônibus circular. Quando olha um menino de nove anos, Luc, ao seu lado, entende que os dois são a mesma pessoa. A voz infantil anunciando ao cobrador que era hora de descer na próxima parada, se torna a confirmação oficial e inquestionável de que a voz do menino era a sua voz de tempos de criança. Ele e Luc eram a mesma pessoa. Não havia como negar.
O protagonista, então, segue Luc e os dois ficam amigos. Lentamente ele vai descobrindo que os fatos da vida do garoto são os mesmos de sua própria vida. Claro, não era uma precisão digital, mas Luc quebrou um pé quando tinha sete anos; ele, a clavícula. Luc sofrera com a catapora; ele, com o sarampo. Tudo era uma repetição analógica e constante dos eventos no tempo de cada um.
A explicação de Cortázar para esse fenômeno é que todos somos imortais, porque voltamos a viver de maneira constante e ininterrupta. Com tantos retornos, claro, seria 'normal' ocorrer uma falha e eis que seria possível encontrarmo-nos com aqueles indivíduos que eram nós mesmos. E isso num mesmo espaço, mas em tempos diferentes. Alguém pode vir antes da hora, ou se atrasar. Somos assim, conflituosos até mesmo na hora de escolher como trilhar o tempo e o espaço.
O conto é uma bela metáfora sobre o porquê de termos, às vezes, uma afinidade, uma atração incontrolável por certas pessoas. Algo que prescinde de palavras, razão e lógica. Mas isso também pode nos deixar tristes, cabisbaixos. Temos muito mais estranhamentos, antipatias, antíteses do que proximidades nesse vasto mundo. Somos uma imensidão de indivíduos ávidos por encontrar a nós mesmos entre uma massa de estranhos que nos cerca e, dessa forma, suavizar um pouco a amarga condição solitária da existência humana.
Já encontrei comigo mesmo e faz pouco tempo. Cortázar tem razão, o fenômeno é possível. Quando isso me ocorreu, fui tomado por uma alegria profunda. Renasci para uma série de sonhos que já haviam morrido em meu corpo e descansavam esquecidos em seus jazigos. Devo confessar que esse outro eu era uma alma maravilhosa, cheia de beleza, cabelos claros, pele lisa e seios simétricos. Nunca pensei que isso pudesse acontecer. Eu queria por demais ter a mim mesmo nos braços. Passei a fazer tudo o que era possível para chamar minha própria atenção. 
Não tenho dúvidas de que me encontrei comigo mesmo num vacilo do tempo sobre o espaço. Somos como a luz nos conceitos quânticos: parada e em movimento. Dois pontos unos em dois lugares equidistantes no universo. Um deve ficar no mundo dos sonhos, onde vivem as almas; já o outro deve caminhar sobre a Terra. Às vezes quem fica é impaciente e segue a si mesmo pelo mundo.  
Você quer saber como eu tenho certeza disso e por que posso ser testemunha do contista argentino, Julio Cortázar? É simples! É que quando encontrei meu outro ser, o amei mais do que a mim mesmo. Eu só pude direcionar tanto amor a esse outro ser em carne e osso, tal como fiz, porque estava diante de algo que era eu mesmo. Fácil?
Não posso e nunca fui sou capaz de amar a mais ninguém nesse mundo além de mim mesmo. Por isso entendi que, enquanto amava esse outro eu mais do que a mim mesmo, tratava-se, ‘evidentemente’, desse fenômeno descrito por Cortázar. Em resumo: vivi um brutal acidente que me jogou num profundo ato de amar a mim mesmo que me corroeu até o DNA da alma. Não sobrevivi porque estou morrendo, como todo e qualquer ser humano.
Luc, porém, morre em definitivo no conto de Cortázar e liberta o protagonista da convivência com seu outro eu. No meu caso, como não sou confiável, acabei por abandonar a mim mesmo. Talvez tenha sido vulgar, tenha feito coisas que me desapontaram de forma imperdoável. Mas afirmo que também me decepcionei com esse meu outro eu. Talvez por ele ser jovem e ter desejado encontrar coisa melhor. O que não é difícil.
Nunca mais me vi e, acredito, devo estar caminhando pelo mundo tentando esquecer de mim mesmo e procurando um outro amor que não seja eu. Mas como amar a um outro ser estranho que não seja eu mesmo? Vou sair de minha cabeça e conversar comigo mesmo, como se fôssemos três. Pai, filho e espírito louco.
Que Augusto dos Anjos nos guie através dessa multiplicação de egos.  O milagre dos Eus! Onde basta adicionar mais uma letra para que todos os eus se tornem ‘d-eus’. Como disse Fernando Pessoa, “afinal, deus é toda a gente!”.