Nada é mais
belo na Bíblia do que o Eclesiastes, que significa, a groso modo, o ‘pregador’,
aquele que anuncia aos quatro ventos que tudo no mundo é mera vaidade, e que
não há nada de novo sob o sol dos dias terrenos. Sua autoria é atribuída ao Rei Salomão, no período conhecido como exílio da Babilônia. Mas o que
os teólogos tendem a acreditar, em dias atuais, é que foi escrito por muitos.
Talvez o primeiro livro escrito por várias cabeças, com tendência ao pluralismo
ético, moral e cultural. Um aglomerado de aforismos que têm como tema
principal, a imbecilidade de ser vaidoso.
Me lembrei do
Eclesiastes, dias desses, re-assistindo ao filme Matrix. Em certo ponto da
história, os personagens trocam impressões sobre aquele mundo irreal e dizem:
“o oráculo me disse que isso aconteceria”. A frase foi como um estalo e me
levou ao seguinte raciocínio: “o profeta, seja ele quem for, só pode profetizar
sobre um mundo cíclico, onde nada é novo, tal como diz o Eclesiastes”. Até aí,
sem novidades, só mais um ‘estalo’, um insight, uma ‘Eureka’, um satori, ou o
nome que você queira dar a esse tipo de pequena revelação.
Do Matrix ao
Eclesiastes; do Eclesiastes aos mortos de minha família. Apesar de meu
ceticismo orgânico e do meu navegar em mares ateus, por vários momentos da
vida, converso com os mortos de minha família. São bons conselheiros. — Não, eu
não sou kardecista. Normalmente eu os bombardeio com perguntas e os espero
responder. Até empresto minha própria voz para que respondam. No fundo é uma
conversa que tenho comigo mesmo, que todos nós temos em nossos interiores.
Platão chamava a isso de Dianóia; já os caboclos do mato, ‘inda hoje, chamam de
matutar.
E de tanto
matutar sobre Matrix e o Eclesiastes, cheguei a certos questionamentos: se nada
é realmente novo sob o sol do mundo, por que seria pecado a homossexualidade, —
mais velha que andar pra frente —, como pregam as vozes da vaidade moral das
Igrejas Cristãs Modernas? É possível não entender que, tanto o papa Bento XVI, mais
seu staff, com suas roupas estilizadas, chamativas e caríssimas, quanto o Pastorado
Evangélico, com seus ternos e discursos banhados a riqueza e prosperidade,
sejam outra coisa além de monumentos à vaidade? Cristo usava um cajado e uma
bata velha, não se vestia como uma alegoria de Escola de Samba medieval, no
caso católico, menos ainda como um MIB, os homens de preto, no modelo
evangélico. Quem tem a posse da verdade: Cristo, os católicos e/ou os
evangélicos?
Vamos nos
lembrar que o primeiro sintoma de vaidade é a posse da verdade. Depois vem a
idéia de exclusividade sobre ela. E finalmente, a imposição aos outros, através
de instituições que se multiplicam como franquias. Imaginemos um dia o
McDonald’s a gritar aos sete cantos do mundo que é o único e legítimo proprietário
do hambúrguer. O Eclesiastes diria: vaidade. É exatamente o que papas e
pastores fazem sobre a história e as palavras de Cristo: elas lhes pertencem,
tal como numa patente. E é com base nessa posse ilusória, vaidosa, que impõem
aos outros as maneiras de se vestir, desejar, amar, odiar, criar os filhos,
pensar, pecar, perdoar, enfim, existir.
Mas é notório
que a existência evolutiva, — a benção, Darwin —, segundo o próprio
Eclesiastes, é anterior as instituições religiosas, políticas, econômicas e culturais.
Até mesmo o judaismo-cristianismo-islamismo, filhos da mesma árvore teológica,
não podem ser considerados novidades sob o sol do mundo. Afinal, nada é novo e
tudo é mera vaidade cíclica na cabeça de primatas que sonharam e sonham com
deuses.
“Em suma”: tudo
o que nasce já traz em si o germe da decadência, e só consegue manter-se
impositivamente aos outros se der as mãos à vaidade; mas não custa relembrar
que, o Mundo está fadado a um fim, mesmo antes de seu próprio apogeu. E é
justamente isso que mais me fascina no Eclesiastes: o ‘pregador’ é um
iconoclasta e não perdoa nenhuma edificação, nem mesma a que o abriga: a
própria Bíblia. Talvez, por isso, em edições mais sofisticadas do livro dos
livros, no rodapé do Eclesiastes, se lê que é preciso cuidado na leitura desse texto,
pois o mesmo pode soar a ouvidos menos atentos que foi um ateu quem o escreveu.
Extraordinário
paradoxo, a Bíblia traz em si o germe da destruição das vaidades humanas e
divinas, ambas perecíveis nesse Mundo que, futuramente, será uma vastidão de pó.
Não há como sustentar a vaidade com alicerces de pó, “nem mesmo o diabo no meio
do redemoinho, no meio das ruas desertas”.