O açougueiro de sonhos
Recebi da patética mulher que nos coordenava um papel que indicava um endereço onde deveríamos buscar nossos guarda-pós, os sobretudos que deveríamos usar sobre a roupa comum do dia-a-dia. Era só um artefato, só um pedaço de tecido costurado para que entrássemos nele e com isso, nossa imagem perante os alunos pudesse ser entendida como a de seres que obedeciam a um poder superior e que tínhamos uma roupa para a nossa já tão desgastada liturgia. Havia um sentido de restauração, de reforma no ato de ter de usar aquele guarda-pó.
Batemos na porta da confecção e uma mulher sem sorrisos nos atendeu. Conferiu os nomes antes que entrássemos e depois nos indicou o lugar onde se experimentava as roupas; eram quartos com espelhos que iam do chão ao teto, em todas as paredes, um local onde se poderia ensaiar o balé, faltava a barra onde as bailarinas se seguravam para a curvatura do corpo até que pudessem tocar o chão.
Nossas imagens no espelho, em tamanho natural, eram assustadoras. Não se tem noção do quanto se desgasta quando se trabalha para uma escola religiosa. Sim, eu havia trabalhado cinco anos para uma ordem católica que nadava em dinheiro e pagava um salário mísero. Ao meu lado, e também refletido no espelho naquele mesmo momento, estava Ricardo Soledade, dono da cadeira de história. Um marxista que rumava para um niilismo extremo, de tanto que já havia ouvido atrocidades da coordenação nos planejamentos anuais. Assim que abotoou a peça sobre a roupa, olhou pro espelho e soltou a peça.
— ...tô parecendo um açougueiro, um açougueiro de almas...
E ali estava uma boa definição para nossa função, pessoas que usavam o corte frio de uma razão cartesiana para exterminar os sonhos dos adolescentes, da juventude que era adestrada para continuar a manter o mundo na mesma situação de sempre.
Naquele dia me separei do Rick na próxima esquina. Não era possível tomar umas e outras com aquele manto nos braços, devidamente embrulhado com papel de presente cheio de motivações natalinas. Tínhamos acabado o ano letivo. Vinha o recesso, o sobretudo era para o primeiro dia letivo do próximo ano. Usei um cabide velho e pendurei o uniforme do ‘Pe. Benito’ no fundo do armário. Tinha algumas semanas para respirar, latas de cerveja, livros e a TV desligada. E foi numa noite daquelas, após diluir o mundo em cevada, que sonhei com aquilo que eu era. Um destruidor de sonhos.
“...até a linha do horizonte tudo parecia desolado. O capim seco de cor siena contrastava com a pista de cimento cru; o céu era cor de chumbo, o vento tocava as nuvens; do meu lado o imenso hangar e sem aviso prévio, o B52 aparece com suas asas gigantescas, pousando na pista cinza, o barulho das rodas, a agitação do ar e a presença daquele pássaro de ferro de guerra. Ele parou e do meio de sua barriga uma porta se abriu. Eu sabia que era para mim. Caminhei até ela com a mão sobre a cabeça, e o fiz assim porque havia um capacete de couro, eu precisava segurá-lo. Os aros dos óculos acoplados ao capacete estavam sujos. Entrei na barriga do pássaro e me deparei com pessoas conhecidas, todas com um sobretudo branco igual ao meu, todos sujos de ferrugem, de graxa e, ao que parecia, de sangue. Gotas estampadas.
Tomei meu lugar no assento, um longo banco encostado na parede do interior da barriga do pássaro; na outra parede havia outro banco. Gente ao meu lado e à frente. Tinham o mesmo olhar que eu, a mesma tristeza resignada; eu ainda não me lembrava do que estava por vir, ainda ia demorar um pouco até entender que fazia aquilo todos os dias, que era assim que me sustentava.
Uma voz de corneta soou naquela atmosfera metálica.
— AÇOUGUEIROS, PREPAREM-SE.
Então um alçapão se abriu no chão, bem próximo de nossos pés, ao mesmo tempo em que um cinto descia do teto para ser preso à cintura; cada um tinha o seu. Rapidamente me prendi. O medo da altura e a possibilidade de se cair pelo alçapão criavam vertigens. Eu estava inseguro, minha voz era fraca, sentia um frio na barriga, o coração disparado, um medo impregnava tudo. Presos pelos cintos, todos flutuavam sobre o alçapão, lá estava a Terra; o chão; e era uma seara bela com o vento a acariciar-lhe a pele.
O zunido do motor aumentou e com ele a tensão, parecia que agora descia em direção ao um alvo, em rasante, era um ataque. Só então eu vi na parede uma infinidade de bombas, bastava o braço esticado e qualquer um de nós alcançava uma delas; elas se desprendiam com facilidade, como livros de uma prateleira de uma biblioteca escolar, mas eram bombas, no formato de pequenos foguetes. E a voz metálica ordenou que as jogássemos pra fora, em direção àqueles que corriam; quanto mais as bombas explodiam no campo, mais o marcador do painel do avião registrava o aumento dos proventos. Era dali, daquele marcador que vinha o meu salário, e estava diretamente ligado ao efeito das bombas sobre os habitantes da seara.
Pareciam ser livres, viviam andando sem destino, pés descalços, inocentes, cabelos soltos, meninos numa terra pura, livre da cobiça e da cretinice. Usavam roupas desgrenhadas eclaras, como capas de heróis; banhavam-se nos córregos que cruzavam a seara, às vezes amavam-se livremente sob as poucas árvores que restavam; no ar, acima deles, como seres superiores, estávamos nós, os açougueiros de sonhos, trucidadores de almas.
Da cabine vinha o comando; eram homens-crocodilos, e tinham os corpos cobertos por um couro-couraça que os tornavam insensíveis. Imensos cifrões em seus olhos; eles mal nos dirigiam a palavra, mas estávamos ali, ao dispor deles, à vontade que viessem a ter; minha vida dependia do humor deles, do que pensavam de meu trabalho.
O mais estranho de tudo era quando um bando de habitantes da seara se aglomerava para facilitar que nossas bombas os acertassem. Os homens-crocodilo regojizavam-se nessa hora, era de onde brotava o discurso sobre qualidade e sobre ser o açougueiro ideal. Era desesperador ver a expressão de um menino da seara sendo abatido por uma de nossas bombas; depois delas eles nunca mais se comportavam da mesma maneira. Adquiriam um olhar ensimesmado, passavam a ser tomados por um sentimento de impotência e dificilmente sorririam de novo ao longo da vida.
Nas bombas havia os verbos, os números, os gráficos, as técnicas de escrita, a interpretação pronta, a filosofia oficial, a deseducação artística, a moral hipócrita do neoliberalismo e a falsa concepção da idéia de um deus salvador. Tudo banhado pelo estoicismo, tudo como uma imensa reunião de pais e mestres e a vida sendo jogada fora, tudo para alimentar o apetite dos homens-crocodilos, todos cobertos por um couro-couraça que os tornava ainda mais insensíveis e não diziam bom-dia com sorrisos.
Depois de um longo dia de trabalho o avião pousou próximo ao hangar e descemos cabisbaixos, entramos e tiramos os guarda-pós e os depositamos nos armários. Diante do quadro de recados fomos sendo advertidos de maneira informal, mas não menos cruel. De novo cabisbaixos, estávamos atrasados na descarga das bombas, estavam acumulando e uma nova remessa já estava a caminho. Seria preciso acertar a programação e bombardear ainda mais o povo da seara. Seriam ainda mais infelizes.
Segui o caminho de volta pra casa; diante de mim um imenso horizonte vermelho, o sangue manchando o céu sobre as searas; mais à noite, diante da tela da TV, as notícias sobre os habitantes das searas que cometiam crimes sangrentos e bárbaros e a voz do jornal condenava tais atitudes e propunha o aumento dos B52s como solução para o comportamento dos delinqüentes. Era mais gente como eu, comandos pelos homens-crocodilos para salvar o mundo de aquela violência.
Em minha casa, com os olhos no teto, pensei que um dia, um dia desses, um habitante de seara seria tomado de uma coragem extrema e atiraria nos aviões e então a grande explosão me libertaria de minha mediocridade e haveria uma chance para a liberdade, para a felicidade”.
Acordei no meio da manhã com latas de cerveja rolando lentamente sobre o assoalho de madeira, que absorvia as poucas gotas que haviam sobrado naquele entulho de alumínio.