Observar é uma tarefa fora de moda, porque parte do princípio da existência do outro. Em tempos em que um dos gestos mais comuns é da auto-fotografia (selfs), sentar-se à beira do caminho para olhar o fluxo de pessoas me parece um gesto antropológico já em extinção. Quando me dou a esse luxo, o de parar pra olhar o movimento das gentes, não tiro o celular do bolso para ler as mensagens enviadas pelos grupos sociais virtuais. Me concentro nos desconhecidos que estão diante de meus olhos em movimento. Até mesmo porque não tenho celular, e nem me interessa ter algo do gênero.
Dias desses, num Shopping Center, deixei
meu corpo cinqüentenário descansar numa daquelas cadeiras que ficam no entroncamento
de corredores. ‘Salas de estar’ para um breve descanso do consumidor. Lugares
planejados, talvez, para os eternos transeuntes reorganizarem seus planos de navegação
através daquela catedral do consumo. Mas digo que é um excelente ponto de
observação para uma iniciação nos significados da linguagem da estética
moderna.
O consumo no Shopping Center é feito por
um movimento humano que se assemelha a um êxodo num carrossel. As pessoas vão e
vêm dos mesmos lugares para os mesmos pontos de início, ou final. O tempo não
só é dinheiro, como também é o movimento constitucional do (direito) de ir e
vir; mas deve ser contínuo.
Em meio à contemplação do fluxo, iniciei
meu trabalho de identificação. Comecei por selecionar, a esmo, um indivíduo. Depois
abstrai sua imagem do todo e abri as portas de minhas especulações por meio da
percepção que sempre busca respaldo no conteúdo histórico. - O homem que abstraí
da massa tinha quase a minha idade, cheguei a pensar que era um antigo
conhecido do tempo de escola, mas logo vi que não. Era magro, bem arrumado, mas
seus braços, seu rosto e seu cabelo já não conseguiam mais esconder o grau
natural de deterioração do corpo. O contraste com as vitrines e luzes e objetos
expostos para regozijo do consumo era evidente. Mas o que se passava em sua
cabeça?
Caminhava junto a esposa e sempre
respondia a ela afirmativamente, ao mesmo tempo em verificava se a carteira ainda
estava no bolso da calça. Diante dos cartazes do cinema, parecia conhecer todos
os filmes que ainda não tinha assistido. Nas promoções da loja fazia cálculos, distinguia
o que era melhor do que não era. Mantinha um comportamento digno de respeito naquela
atmosfera que exalava a sacralidade que ele absorvia.
Como todo homem é rei em sua abstração,
tive coragem de me aproximar para perguntar por que ele se movia daquele jeito,
gesticulava exatamente como fazia naquele momento enquanto olhava a tudo como
se fosse de uma forma programada, uma repetição dos movimentos corporais das
outras pessoas que nos circundavam. Uma linguagem corporal clonada para que o
todo jamais fosse incomodado com a possibilidade da existência de alguma
individualidade heterodoxa.
Sua reposta foi telepática. “Porque é mais
fácil. Me acalma a idéia de que haja alguém no controle. De que exista regras
criadas pra mim e não por mim. Que tudo é assim desde que o mundo é mundo. Me
sinto útil não sendo eu mesmo. A ordem é meu Deus. Me sinto como parte de algo.
Aliás, se me permite, eu não te conheço de outros tempos?”. Não respondi e me
afastei. Encaixei-o de novo na paisagem e o deixei seguir. Fora uma estranha
confissão. Corajosa. Por demais corajosa.
Segui em frente entre
a idéia de amar a realidade de forma inconteste, ou de libertá-la de si mesma,
desse mergulho na auto-assepsia que nos conduz a um resfriamento da existência.
Anarquizar a replicação do nada em suas exposições de multifaces. Então, depois
me lembrei de um templo hindu, Lakshmana, do século X, rodeado por esculturas
em alto relevo que retratam corpos em todas as posições sexuais imagináveis. Porém,
dentro do templo, para o observador que se arrisque na busca por uma resposta a
tantos corpos nus expostos à luz do sol, somente um imenso espaço vazio. O nada
representado e exposto e sem pudor. A profundidade da mensagem parece viva.
Somos vazios e em inércia histórica, desfilando em galerias de consumo. Depois
disso, peguei meu carro e fui embora. Meu tempo já havia passado.