sábado, 1 de setembro de 2012

O amor


Dos quatro irmãos ele ficou em casa e cuidou da mãe. Solteiro, do trabalho pra casa, da casa para o trabalho e durante longos anos. Sabia da rotina da pequena cidade tal como sabia de si mesmo. Olhava sempre pela janela do escritório de contabilidade os mesmos passando pela rua. Um universo de mil e poucas pessoas numa cidade pode ser menor que uma caixa de fósforos. O rádio sempre tocava as mesmas coisas, pois o “dono” da rádio comunitária tinha poucos discos. A estação ferroviária, motivo da cidade ter surgido, era a toca do chefe da estação, de uniforme azul, cadeira inclinada, encostada na parede, cochilando e vendo o movimento nenhum das carroças e caminhões de leite. Esperava apenas pela a aposentadoria.
Em casa Heráclito ouvia as lamúrias e as esperanças da mãe. Velha, muito velha, esperava a chegada das datas especiais para rever os outros três filhos que haviam ganhado mundo. Nos últimos anos as visitas passaram a ser substituídas por telefonemas. Aquele aparelho velho, preto, era o transmissor das desculpas das ausências nas festas de fim de ano. Nada de filhos, nada de netos. Ela só tinha Heráclito. E Heráclito não tinha ninguém.
Suas lembranças se resumiam à infância, à partida dos irmãos, às chuvas que destruíram estradas, à morte de pessoas, cachorros e bois da região. Padres que iam e vinham, trens que, às vezes, mudavam a cidade com seu barulho de universo sendo rasgado. À noite, horário nobre, ele e a mãe saboreavam a eterna rotina da TV. Onde não havia rotina?
Heráclito às vezes se lembrava de seu pai, filósofo de botequim, que havia batizado os quatros filhos com nomes de filósofos. Sempre dizia a ele que o filósofo Heráclito anunciou que não se podia atravessar duas vezes a mesma água de um rio. Tudo mudava constantemente, a água que passava, não voltava mais. A água era o tempo. Assim ele percebia que sua vida era uma contradição: seu nome era uma homenagem ao pré-socrático que defendia o eterno movimento, mas sua vida era a eterna pasmaceira daquela cidade. Vivia na mesma água, sempre. Não era aquilo um rio, mas sim um lago pequeno e raso. Andava no mesmo barro todo dia. Nem a agonia fazia efeito. O domingo, à tarde, era a própria essência de tudo o que era estático. A mais profunda silenciosa dor do mundo.
Mas um dia a dor de Heráclito começou a mudar. É que todo universo por mais extático que possa parecer, também se transforma. É demolido por uma força centrífuga. Suas saídas do escritório eram sempre às seis da tarde. Sempre sob o mesmo crepúsculo, ia solitário, carregado de cotidiano, sem a menor chance de amar alguém. Sabia até mesmo das folhas que caiam no chão, sempre nos mesmos lugares, fazendo os mesmos desenhos. Um dia, sem saber o porquê, entrou na igreja. Antes da Missa a capela ficava aberta e praticamente vazia.  Então ele começou a olhar o que já conhecia e foi aí que conheceu a mulher que mudou sua vida.
Foi na capela paralela ao altar que ele a viu. Vestido branco, com o olhar mais doce que uma mulher pode ter; Heráclito caiu de joelhos. A água do rio, finalmente, havia passado diante de seus pés. Sentiu o mundo girar, a brisa tocou seus em cabelos; era o amor pelos olhos da mulher vestida de branco. Tudo normal não fosse a mulher uma estátua de Santa Clara.
Em casa não conseguiu mais se concentrar na TV. Seu pensamento havia sido tomado pela estátua daquela mulher que a Igreja dizia ser santa. Mas se era ela a parte que lhe cabia nessa vida marasmática, sentiu a ansiedade tomar-lhe o mundo. O travesseiro não lhe deu paz, seus sonhos eram de olhos abertos, salpicados pelo suor da inconformidade por não poder beijar Clara. Ela não era santa, mas sim seu amor. Iria lutar contra tudo, contra todos só para tê-la em seus braços. Um cavaleiro deve destruir os algozes de seu amor, o castelo que a guardava deveria ser invadido. Era preciso buscá-la o mais rápido possível.
Mesmo sem ter dormido uma gota, entrou na igreja e ouviu o sermão do padre. Por coincidência, era sobre o amor de Clara por São Francisco, um amor puro, sem contato carnal, abençoado pela Igreja. Heráclito sentiu uma revolta profunda, ninguém saía dizendo aos quatro ventos que sua amada tinha outro homem, mesmo que esse homem fosse santo. Sua honra fora ultrajada, tinha que desafiar seu concorrente a um duelo. Assim é que se resolviam os triângulos amorosos.
Em seus relatórios só via espadas, cavalos e lanças. À tarde iria libertar sua amada daquela prisão. Precisava de um cavalo, de uma armadura e de muita coragem. Antes de terminar seu expediente, saiu em busca do cavalo. O encontrou-o perto da Estação de trem, pastando no abandono da Rede Ferroviária. Com a crina como rédea, o levou para o alto do morro onde um alpendre abandonado seria seu paiol. Suas armas seriam colocadas ali e ao amanhecer, invadiria a igreja.
Passou a noite em vigília. Um São Jorge a espera para vencer o dragão. Sua mãe não o viu mais, o esperou por toda noite. Escondeu-se na vergonha, tinha medo de pedir ajuda. Se um filho não volta pra casa, é por que algo maior o prendeu. Mulheres, jogo, festa, música, coisas assim. Ela não precisava ligar para a polícia. Mais cedo ou mais tarde os filhos saem de casa. Heráclito havia escolhido sair por último. Sim agora ela estava sozinha. Diante dela apenas uma estrada abandonada que findava no túmulo. Eis a perfeição.
O sol tocou nas lâminas da armadura de Heráclito e como num sinal, desencadeou suas ações morro abaixo, rumo à fortaleza que prendia sua amada. A paisagem passava zunindo por sua cabeça; àquela hora da manhã ninguém presta muita atenção em um homem em sua armadura sobre um cavalo marrom e branco. 
As patas dianteiras arrebentaram a porta da igreja. As ferraduras estalavam no chão de granito. Passou com sua espada em punho diante do altar e com uma só pancada, arrombou as grades que cercavam Clara. Ela levantou os braços e com os olhos em lágrimas, encontrou a garupa de seu herói. Saíram pelos jatos de luz da porta principal. O mundo os esperava, quem poderia dizer que não?
Longe da cidade, sobre um morro verde, Heráclito levantou a tampa de seu capacete e beijou sua amada. A brisa fazia aqueles cabelos claros voarem soltos pelo mundo novo. Os corações batiam forte. Ela não era mais de pedra, nem ele de gelo. Mas no auge, vem a mancha da ferrugem. O sorriso de Clara foi se fechando. Ela olhava pro horizonte. Algo vinha na direção deles. Ela disse que era Francisco. Ele não iria deixar que sua amada fugisse assim, com outro, após séculos de espera. Seria preciso um duelo pra ver com quem Clara ficaria. Heráclito sentiu o mundo todo sacudir seu norte. Não se duelava com santos, inda mais São Francisco. Mas Clara não deu opção a seu cavaleiro. Ou era luta, ou ela ia com o santo.
O tempo girou como numa névoa, o cenário transfigurou-se e eles estavam numa arena. No local do imperador romano, estava Clara. Iria esperar o vencedor para desposá-lo numa longa lua de mel mundo afora.
O gongo soou e os gladiadores se aproximaram. Heráclito levantou a espada e estava pronto para decepar o santo. Quando seus olhos viram os de Francisco, se deparou com tanta ternura, tanta humanidade que todo seu corpo desfigurou-se de uma só vez. Seu sangue irrigava tudo com uma força jamais vista. Não poderia matar aquele homem, aquela simplicidade plantada diante dele, era tudo o que ele não fora. Não era possível atravessar a mesma água duas vezes porque não se podia viver fora do rio, fora do ar matinal que orvalhava o mundo. A espada foi ficando pesada, foi caindo e o mundo desaparecendo. Não viria mais Clara. Uma longa noite se abateu sobre o reinado de Heráclito.
Quando acordou, deparou-se com os olhos do enfermeiro como dois objetos luminosos. Um sorriso brilhava naquela face. Conforme adentrava a razão, percebeu que um outro enfermeiro também estava ali. Então ouviu.
Foi a crise mais forte que ele já teve!
- Com certeza!
É preciso dizer pr’aquele médico novato, que Jimi Hendrix não é indicado a pacientes que vivem aqui.
Deixa que eu falo.