quarta-feira, 4 de setembro de 2013

O funeral Viking



“Por que nós fazemos com as criaturas de Deus o que os nazistas fazem conosco?” Shosha, personagem de Isaac Singer, num romance homônimo, faz essa pergunta a Arele, que é o próprio Singer, meses antes da invasão de Hitler — que seu nome seja apagado da história — à Polônia. Casados, os dois sondavam a infância num passeio. Lembraram-se, para vergonha de Arele, que ele era o campeão de massacre de moscas. “Mas por que Deus criou as moscas, se elas picam?”. “Shosha, não sei, isso não tem resposta!”.
Ao terminar de ler o trecho, fui invadido por uma visão. Eu, pobre e cético mortal, já havia exterminado uma série de seres ‘criados por Deus’, ou pela natureza, o que dá no mesmo, segundo Spinoza, e de forma tão cruel e fria como os nazistas no Holocausto.
Enquanto olhava atônito o vazio à minha volta, meu cão se aproximou. Gosto de ler deitado num tapete esticado no quintal, com os pés no sol e corpo na sombra. E era justamente no corpo do meu pobre cão que ocorrera a minha última ação de extermínio. Minha alma pesou, um chumbo que foi até os pés. Eram as vozes gravitacionais do inferno me chamando pra baixo.
Aprendi, nos episódios do Dr. House, que as pulgas mordem os ratos e depois passam pros cães e, dessa forma, a peste bubônica pode se transmitir livremente; não é e nem nunca foi um privilégio medieval, a peste negra. — No Absolutismo francês dos ‘luíses’, a nobreza do cão era medida pela quantidade de pulgas que ostentavam em seu pêlo. Chique!
Claro, entre os reis absolutistas e os diagnósticos do Dr. House, melhor o segundo. E foi com base nisso que espalhei Frontline no pêlo lanoso de meu brother Kapang (foi ele quem escolheu o nome, e outro dia eu conto).  Dada então a revelação de Singer, fui olhar entre os pelos de Kapang e lá estavam dezenas de cadáveres de pulgas, todas exterminadas pelo mesmo princípio do gás nazista. Help! I was a monster!  
Minha reação foi imediata. Peguei uma caixa de fósforos vazia e recolhi seus corpos e preparei um funeral Viking. Um amontoado de pedras, a caixa de fósforos como esquife, o pôr de sol como cenário, a trilha sonora do Led Zeppelin, Imigrant Song, e o fogo ardendo em pureza; enquanto isso os espíritos das pulgas subiam em direção à luz do Valhalla, o paraíso dos Vikings, onde Odin, junto aos seus guerreiros, numa mesa cheia de carne assada e cerveja, assediados pelas Valquírias, celebram a eternidade, que na mitologia nórdica, ao contrário das outras, tem um fim. O chamado crepúsculo dos deuses.
‘Em suma’, acho que ouvi um trovão vindo do céu, um esporro. Era Odin que gritava, “QUEM FOI O FILHO DA P... QUE MANDOU ESTAS PULGAS PRA CÁ?!
Um amigo me disse que as pulgas não têm espírito. Retruquei dizendo que São Francisco amava a todos os animais e não dedicaria sua vida e seu amor a seres desprovidos de alma. “Pulgas não são animais, mas sim insetos da ordem dos sifonápteros, parasitas que vivem do sangue dos mamíferos; estes sim, animais”.
Retruquei dizendo que a única coisa que consolava minha consciência, sobre o extermínio causado por mim, era a possibilidade das pulgas estarem num lugar melhor. Sei que era um sofisma glamoroso, pois a simples idéia da existência da alma justificaria a morte de todo e qulauqer ser. Pensei em silêncio em quantas vacas eu já não havia ingerido. Deuses hindus descendo pela minha garganta, temperados com sal grosso, acompanhadas pela cerveja gelada. 
Diferente do nosso tim-tim e do tradicional saúde, quando batemos nossos copos, brindarei agora como os dinamarqueses, com sua palavra sagrada: SKOL. E que as pulgas me perdoem, pois brindarei a vida de cada uma delas.