- escrito em 2002
— ...nem a priori, nem a posteriori!
Era João
Galhardo, que diante da mesa cheia de garrafas de cerveja, definia o caso que
há muito atormentava a cidade. O sacristão não concordava, menos ainda o
ilustre vereador do partido verde, e tão pouco o advogado da cidade, que em
meio a citações jurídicas inócuas, era o maior adversário de Galhardo.
— Olímpico não bebe! E isso é fato!
— Se não bebesse, não comeria os pés de
boldo da cidade.
Olímpico
era um cavalo que vivia solto. Por várias vezes fora expulso de jardins de
senhoras, que com vassoura nas mãos e gritos desesperados na garganta,
expulsavam-no do éden com a boca cheia de boldo. Qualquer jardim que viesse a
ter um pé daquela árvore, tinha seu muro superado pelo salto desse estranho
eqüino. Dizem que foi por essa peculiaridade que recebeu a alcunha de Olímpico.
Seu salto sobre grades e muretas era algo cinematográfico.
Galhardo
dizia que, segundo Emanuel Kant, não havia razão para isso. Para ele, o livro
do filósofo que se intitulava, Crítica da Razão Pura, era uma verdadeira fonte
de conhecimentos. Não havia nada que não pudesse ser explicado através daquele
livro. E como em suas páginas não havia nada entre animais e álcool, era lógico
que Olímpico não bebia. O sacristão defendia a citação bíblica de que todo
homem tem o direito a ficar de porre uma vez na vida. Se trocássemos o termo
Homem pelo genérico, criatura, tudo se resolvia. O advogado rebatia:
—
Meus caros, não é emendando um texto que resolveremos o problema real. A
essência continua encoberta: Olímpico bebe ou não?
O vereador
do Partido Verde defendia a possibilidade da extinção dos pés de boldo. Tal
espécie acompanhava o Homem há muito, em longa jornada etílica. Quem já não
havia amanhecido com um paladar refinado, após uma longa noite dionisíaca, onde
o sabor de uma gaveta de roupa suja domina o cenário bucal de maneira intensa?
Só boldo para colocar o fígado em dia, por conseqüência, a boca. Pensava
em iniciar um processo contra o cavalo, quiçá não chegasse à praia da pena de
morte.
— Mas você não é do Partido Verde?
—
Sim, mas...
— ...mas quer matar um cavalo?
Por um
momento o nobre edil havia se esquecido que Olímpico não era um homem, mas sim
um animal. A confusão foi atribuída ao sacristão que havia transformado o
cavalo num ser especial, digno de alma e morada no paraíso, bastando para isso
trocar uma palavra no texto sagrado: de Homem para criatura. Mas não era o
homem uma criatura? Galhardo coçava o queixo e sentia que sua metafísica estava
pronta a explodir. Ou pelo menos o entendimento que tinha sobre ela não estava
lhe servindo de nada. Kant passava de forma tangente em relação ao assunto em
debate: Olímpico, pés de boldo e a jurisprudência sobre o caso.
Era
preciso descobrir o mistério de Olímpico. A humanidade é assim, não sabe conviver
com o diferente, com o mistério que cerca o próximo. A particularidade é
proibida. Se Olímpico comia boldo, era por que bebia. Ou então tinha um paladar
exótico, o que o diferenciava dos eqüinos. Galhardo não conseguia respostas
para o caso, a priori Olímpico sabia da cura de seus supostos porres, o boldo.
Mas se sabia a priori que a cura do mal etílico vinha pelo boldo, por que
continuar com o suposto consumo de álcool? Diante de tal argumento o
advogado reagiu:
— É uma boa argumentação, Galhardo, mas há
quem diga que a metafísica se amplia com uma substância externa ao
funcionamento cerebral. Ou seja: uma chapadinha faz o ser humano pensar
diferente. Logo, nosso eqüino elevado à criatura catalogável em texto sagrado,
também bebia em função de alguma metafísica.
— Protesto!! Não se bebe para ampliação de
metafísica, mas sim por traição de mulher. Olímpico foi traído por sua esposa.
E só.
O
sacristão preferiu a ótica sexual à metafísica do advogado. Acabou culpando uma
suposta esposa, o que deixou o vereador do PV irritado. Com tal teoria, a vida
conjugal dos cavalos deveria ser estudada.
— Vocês da Igreja querem entender o mundo
através do sexo. Quem fundou a Igreja, segundo o próprio comportamento de
vocês, não foi Constantino, mas sim Freud. Tem vagina em tudo, caralho!
Nessa hora
o dono do bar resolveu expulsar os quatro. Afinal já era madrugada de sábado e
eles que fossem para outro bar, ou melhor, que fossem para casa. Porém ninguém
é expulso de um bar sem uma saideira. E foi durante a última garrafa que aquela
confraria chegou a um acordo. Dividiriam o fim de semana em oito partes de seis
horas e cada um vigiaria Olímpico de maneira integral. Marcação individual, tal
como se fazia com Pelé, Garrincha, Zico e Maradona. Todos os detalhes deveriam
ser registrados.
O vereador
do PV solicitou ao grupo uma consulta a um veterinário, pois a questão sexual
dos cavalos precisava ser esclarecida. Eram ou não monogâmicos? Isso seria
vital para teoria do suposto hábito alcoólico de Olímpico.
Chegaram
de táxi à clínica de Pepino de Ancira, uma clínica que ficava aberta vinte
quatro horas, atendendo cachorrinhos de madames da alta sociedade. Convenceram
o motorista que tal corrida não poderia ser paga por ninguém, pois se tratava
de um trabalho coletivo, em que toda sociedade estava envolvida. Logo ele não
poderia cobrar. Literalmente, saiu queimando pneu.
Pepino de
Ancira tinha 45 anos e há quem diga que só havia começado sua vida sexual após
a invenção do Viagra. Seria o grande oráculo de nossos pesquisadores, que
desejavam esclarecimentos sobre a sexualidade dos cavalos. O grupo chegou e foi
entrando. Cumprimentaram o italiano e logo foram perguntado sobre os cavalos. A
resposta foi.
— ... a
égua é de quem chegar primeiro!
— É igual a um baile e carnaval! Que Deus
nos proteja!
— Caro sacristão, na natureza não há
pecados. A reprodução é o mais importante, a sobrevivência da espécie é o que
importa.
Galhardo
observava a discussão do partido verde com a Igreja e em silêncio agonizava,
pois na Crítica da Razão Pura de Kant não havia nada sobre a evolução das
espécies. O advogado descartava a possibilidade de agonia por problemas
vinculados à paternidade. Se a égua era de todos, não havia motivo para a
tristeza de Olímpico. Pepino de Ancira resolveu jogar um pouco mais de luz na
questão:
— Pode ser apenas um distúrbio
gastrintestinal, eis o motivo do boldo!
Era quase
uma Eureka. Apesar do vereador do PV, já imediatamente após a nova
possibilidade encontrada declarar que, o suposto problema gastrintestinal
poderia estar relacionado ao uso de pesticida nos arredores da cidade. Aquele
negócio de matar capim pra dizer que a cidade era bem administrada estava
causando danos físicos e mentais à fauna local.
Porém,
enquanto grupo pesquisava, desconhecia que Olímpico fizera sua última invasão
em busca por um pé de boldo na tarde daquele sábado. Não sabiam que estavam
investigando um detento. Foi assim: Olímpico havia encontrado a entrada de
serviço de uma casa aberta e invadiu. Ao fundo, deparou-se com um maravilhoso
exemplar da erva em seu maior esplendor. Deglutiu-a sem maiores reservas.
Já a dona
da casa entrou em pânico. E , não bastasse
isso, o vento ainda bateu a porta da entrada de serviço e Olímpico se viu preso
no quintal. Ciente de que precisava fugir, resolveu buscar a saída pela porta
da cozinha e atravessar todo interior da casa. Os gritos, mais os móveis sendo
quebrados chamaram a atenção da vizinhança. Logo veio a polícia e o corpo de
bombeiros que conseguiu colocar uma corda no pescoço de Olímpico. Levam-no para
rua em meio às lágrimas da dona da casa e aplausos da pequena multidão que se
formou por ali.
—...senhor
Olímpico, considere-se preso.
Os homens
da lei eram muito rigorosos. Olímpico fora levado à delegacia.
Há muito o
fato corria de boca em boca. O caso do cavalo parecia querer entrar
definitivamente ao folclore daquela cidade. O mistério, a inversão da lógica
natural, aquilo que difere se torna alvo de especulações e foi isso que
Olímpico conquistou: a notoriedade pelo gosto de comer boldo. Só que agora havia
invadido uma propriedade, havia destruído patrimônio alheio, estava contra a
Constituição, contra os textos sagrados. Mas independentemente disso, seria
condenado; quiçá a morte.
Galhardo
depois da consulta inócua com o veterinário, e curado do porre do sábado,
resolveu escrever uma crônica sobre o assunto e pediu que fosse publicada no
periódico da cidade. Seu texto afirmava que antes de qualquer coisa, era
preciso saber o porque de Olímpico se alimentar de boldo. Seria uma aberração,
uma flutuação nos conceitos darwinistas? Kant não explicava nada sobre isso.
Menos ainda: como se julgaria tal criatura em relação às leis? Ele não assumia
publicamente, mas já possuía uma segunda decepção com a Crítica da Razão Pura
do velho Kant: a impossibilidade do julgamento. O cavalo não poderia ser
julgado pelos critérios racionais de Kant.
A primeira
coisa que a justiça fez, foi procurar o dono do cavalo. Normalmente filho feio
não tem pai. Assim foi impossível encontra-lo. Talvez a culpa tenha sido da
imprensa, que noticiara de uma maneira precoce que, o suposto dono de Olímpico
arcaria com as despesas daquela invasão insólita. Enquanto o cavalo aguardava a
busca de seu dono, o texto de Galhardo saiu e aumentou a confusão.
Todos nós
sabemos da capacidade do brasileiro em interpretar textos. Já alcançamos o
nível dos países africanos, o que mostra uma preocupação histórica dos governos
brasileiros com educação. Por isso, pelo fato de Galhardo repetir várias vezes
em sua crônica: “... segundo Kant, não há razão pra isso”, a culpa acabou
recaindo sobre o tal de Kant. Nas ruas as pessoas conversavam:
—...cê
viu, é o tal do Kant.
— Eu
não toco violão!
— Quê negócio é esse de cantar?
— ‘Cê quer que eu Kant!!
—
Não, o nome do dono do cavalo é Kant!
—
Espanhol?Claro que não!
Italiano!
Para sorte do Brasil
aquele periódico não circulava na Europa. Galhardo chorou ante a repercussão de
seu texto racional. Cercado por seus amigos bebeu o espírito de Olímpico, que
fora sacrificado horas após a impressão do jornal. O sacristão não quis
brindar, pois afinal animais não tinham alma, o que os tornava pagãos.
Ao fim da
décima quinta dose de conhaque, Galhardo resolveu procurar o veterinário. Ainda
pairava uma dúvida no ar. A cruzada etílica atravessou as ruas desertas e
alcançou aquele pequeno hospital. Após alguns minutos de sacrifício,
conseguiram passar pela porta e se depararam com Pepino de Ancira. Galhardo
perguntou:
—
Como é possível você se chamar Pepino de Ancira, se Ancira não fica na Itália?
Então Pepino de Ancira explicou que sua família viera da Turquia para a Itália e há muito. Depois, para o Brasil.
Antes de terminar a explicação, Galhardo caiu sobre a mesa. O álcool havia vencido. Os amigos entreolharam-se e o vereador disse:
Então Pepino de Ancira explicou que sua família viera da Turquia para a Itália e há muito. Depois, para o Brasil.
Antes de terminar a explicação, Galhardo caiu sobre a mesa. O álcool havia vencido. Os amigos entreolharam-se e o vereador disse:
— Pepino, você tem boldo por aí?
— Tenho, mas acho que o caso é mais para
glicose.
Deitado na
mesa onde o veterinário atendia os seres irracionais, Galhardo abriu os olhos e
reencontrou sua eterna derrota. Parecia não haver razão em nada. Uma razão pura parecia só ter existido na
cabeça germânica de Kant. E que mal poderia haver em não existir uma razão
pura? Kant que fosse para a puta que o pariu. Pensou que quando saísse dali,
beberia um trago em homenagem a Olímpico. Que bobagem era essa de só aceitar o
diferente, após uma razão que explicasse a estranheza? Realmente, não havia
razão para isso.