Discordo de Albert Camus.
Ter consciência, ao contrário do que diz o filósofo-poeta, é a única coisa que
pode nos salvar das armadilhas do mundo. Primeiramente, podemos, de maneira
sutil, nos libertarmos de nós mesmos. A natureza, a aurora, a mãe, - a mulher
que nos traz ao mundo - esse conjunto de afetividade primordial nos promete
coisas que não pode cumprir. E são dessas promessas que nos alimentamos e nos
constituímos como seres no início dos tempos. Compõem o primeiro espelho em que
nos miramos. E só através da consciência podemos quebrar essa projeção e
libertar o demiurgo, o bluesman, o andarilho, essa máquina desejante que vive
dentro de cada pessoa. - "Eu gosto de pessoas, não de gêneros!".
Ainda vislumbro essas palavras escorregando por entre os dentes da Senhora
de Avalon, uma ninfa, como se fosse uma verdade adormecida no tempo. Palavras expostas
assim, num gesto simples.
Às vezes me pergunto:
- Quem é você? Um pateta que
ouve Ninfas?
Então me respondo:
- Quer definição melhor do que
essa?
Então, pela lógica do bobo da
corte, a consciência serve, antes de tudo, para nos definirmos como seres
supostamente em ato? Sim, responderia eu a mim mesmo, mas não só isso. Também é
por onde nos movemos em direção ao poente, ao inevitável fim.
- Mas por que se tornastes um
bobo da corte?
Essa história é longa. Eu era o
dono de um Castelo, bem fechado, de paredes negras, circundado por um fosso de
água verde escura; a ponte sempre eriçada. Guardado da luz do sol e de paixões
humanas. O chefe de minha guarda, em armadura negra, nunca permitiu que as
visitas chegassem ao centro do Castelo. Protegidos, cérebro e coração, eu viva
em debates com o Guardião de minha biblioteca, com seu cabelo branco escorrido,
grudado no crânio; a plataforma de nossos temas era o ceticismo gratuito. Posso
dizer que tal postura é sedutora. É o ceticismo quem revela a idiotice do mundo
ao nosso redor.
Mas sabe-se que toda
fortaleza tem um ponto fraco e não é inteiramente intransponível. Num fim de
inverno de tempos passados, fui surpreendido pela Senhora do Bosque, que se
apresentou em meu salão, assim, sem mais nem menos, diante de um chefe da
guarda aturdido e sem graça. "Não sei como ela entrou!", repetia o
Armadura Negra a todo instante. A Senhora do Bosque se apresentou como esposa
de outro Senhor, de um feudo além das cercanias de meu castelo cercado de
vizinhos que nunca conheci e onde à frente ficava o bosque.
Resumindo a história, alegou que estávamos
ligados pela espada de Excalibur, e aquilo era uma loucura, um tormento.
Perguntei onde havia me conhecido, ou me visto? Disse que fora na feira dos
saberes que ocorre regularmente na clareira do bosque; quando me viu, - às
vezes faço um pequeno passeio pela feira, mas sem dirigir qualquer palavra aos
seus visitantes - foi como se já me conhecesse antes da criação dos tempos.
Disse isso e foi embora. Desde então tudo mudou no castelo, que passou a ser
mais poroso e frestas começaram a surgir nas muralhas. A luz começou a entrar
sem pudor algum. Ela ainda atravessava a ponte para deixar o castelo quando o
chefe da guarda me confidenciou:
- As Senhoras dos
Bosques, na maioria das vezes, são ninfas.
- As ninfas pertencem
aos faunos.
- Sim, mas essa pertence
a um feudo cristão.
- Eu não sou cristão,
nem fauno!
- Mas é feio como um
fauno, senhor, se me permite?! – Antes ouvir isso que ser surdo.
Desde então a luz plácida das
palhetas impressionistas invadiu meu castelo. O que deveria fazer? Não
conseguia mais pensar em outra coisa, a não ser no perfil simétrico da Senhora
do Bosque, seu cabelo claro, com fios que bailavam leves ao tocar da brisa
descompromissada, seus lábios e sorrisos sarcásticos, maldosos às vezes, mas
belos e leves, sempre exalando um aroma de hortelã, talvez fruto da minha
imaginação, mas era assim que eu a sentia.
Ela estava sempre a alguns passos
de minhas mãos, como se flutuasse numa luz de neon dos cabarés de boa música.
Suas novidades, palavras, seu jeito de ver a vida, tudo o que vinha dela me
paralisava no tempo, e uma felicidade brotava assim, sem o menor pudor. - Queria
partilhar meu mundo com ela, mas que mundo seria esse? Toda vez que lhe dizia
algo, ela reagia com um leve movimento da sobrancelha, com se dissesse,
"Entendo!"
Porém ela se foi. Levou meu cigarro o vinho e o
coração. O que me restou? Tocar um blues, claro! E ouvir Going to Califórnia, do Led Zeppelin.