É
estranho saber que um homem pode ir perdendo o cérebro pelo caminho. Que as
nossas doenças degenerativas esfarelam nossa mente em milhares de fragmentos.
Gabriel Garcia Marquez foi perdendo o contato com o mundo nesses últimos anos. Foi
se esquecendo de seus personagens, de seus familiares, de si mesmo, até que se
desligou por completo no dia 17/04/14.
As
demências degenerativas nos levam a um caleidoscópio de lembranças,
desconectadas do fluxo temporal, ou talvez, quem sabe, onisciente no tempo, por
isso tão confusas pra nós, meros seres binários. Talvez seja assim que ‘deus’ enxerga
o mundo e a si mesmo. Se existe um ser perfeito, ele percebe a realidade num
desconexo contínuo, que é o todo. ‘Deus’ deve ter todas as doenças degenerativas
possíveis, afinal ele sabe tudo, a tudo sente e a tudo confere. Talvez seja
essa a graça, o amor profundo que nos concede em dias de solidariedade, quando
acorda feliz após uma noite de orgasmos: a graça de poder esquecermo-nos com
indivíduos possuidores de uma história cheia de amores, frustrações, amigos,
inimigos e do gosto pela arte. Os pacotes de insanidades imputados à nossa
racionalidade, mera inquilina de nossa massa cerebral, nos projetam num vácuo
a-histórico de nós mesmos. Eis o sadismo tecnológico de deus.
Em
100 anos de solidão, ou em 100 anos de esquecimento, o que seria melhor pra
nós, meros seres inferiores, premiados pela rebeldia de Prometeu ao nos dar um
pouco do fogo de Zeus, aqueles raios incandescentes, as sinapses, que iluminaram
as massas gordurentas das trevas ‘criadas por Deus/Zeus’? Lembrar ou esquecer, onde
está a dádiva? Gabriel Garcia Marquez quando ‘entrar no céu’ irá se lembrar de
que esqueceu grande parte da vida? É isso que ‘deus’ queria dele?
Já
li o livro, 100 Anos de Solidão, três vezes. Meço o tempo que me resta de vida pela
quantidade de vezes que ainda poderei ler essa obra extraordinária. Em dias de
esperanças e otimismo, creio ainda ser possível outras duas viagens pelo
labirinto dos Buendía. Porém, os fatos de Macondo ainda estão vivos em minha
memória. Guardo as imagens dos delírios literários de Garcia Marquez na alma, são
partes concretas do ser transitório e contingente que sou. Quando encontrá-lo
céu, num espaço reservado aos ateus, o ajudarei a reaver a memória e ainda falarei das Mil e uma noites.
Por
mais que venha a viver, não vou me esquecer do acesso de loucura de José
Arcadio Buendía, patriarca dos Buendía, causado por uma lucidez extraordinária, ao
constatar, atônito, que o dia de amanhã seria igual ao de hoje e que o depois
de amanhã seria a cópia do de amanhã e assim, em moto perpétuo, até que os
olhos se fechassem e não restasse dia algum. E mais, que haveria tantas mortes
quanto eram as vidas que se pudesse ter. E que depois da morte, haveria (uma) outra
morte, e depois outra, até que, finalmente, nos depararíamos com a sublime
solidão do criador, em profundo auto-entendimento de que sempre fora um ser
literário.
O
último Buendía nasceu com rabo de porco, herdado de um tio-âvo
iguana que havia copulado com uma das ancestrais, em tempos imemoriais. Enfim,
no livro, era a hora da comprovação do destino que assombrara ao nascimento de
todas as gerações dos 100 Anos de Solidão: um rebento trágico que não teria tempo para receber um nome, nem história, nem memória: o próprio fim. O último Buendía encarnava o 'Avatar do Esquecimento', lugar onde ocorreria a morte de todos. Até daqueles que já haviam morrido e sobreviviam na memória dos que ficaram vagando por Macondo.
O Buendía rabo-de-porco foi
devorado vivo pelas formigas, enquanto o Caos destruía a cidade num ‘vendaval que
levou a porta da casa com batente e tudo’. Foi dessa forma que Macondo foi
varrida da face da terra. Tal como a memória de Garcia Marquez o abandonou antes
mesmo que seu corpo partisse para a outra vida, em que conhecerá outra
morte, e outra, e outra...
Adeus, Gabriel Garcia
Marquez, deus criador dos Buendía: o começo, o meio e o fim de tudo o que é mais 'fantástico' na literatura sul-americana.