segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

A queda

Na realidade foi como se tivéssemos caído de um sonho. O grande poder da humanidade estava em sua capacidade de misturar a realidade e a fantasia. Mas caímos nas armadilhas do pensamento e nossa percepção foi seduzida pela lógica e pela razão. As usamos como antídotos contra nós mesmos. É quando o sistema imunológico passa a atacar o próprio corpo. A razão e a lógica servem a um mundo de poder que não podemos usar e que se concentra nas mãos de poucos medíocres. Não podemos mais voar, uma toalha é só uma toalha, não é mais a capa de um super-herói. - Em essência, não somos lógicos nem racionais, somos humanos.  
O abismo é a razão. O céu a ilusão. A terra o circo. Somos a corda do trapézio que liga o macaco ao palhaço. O paraíso era só a percepção do tempo junto à ideia de que envelhecemos porque assim é a natureza circular. A razão nos tornou jovens para sempre dentro de um corpo que decai vertiginosamente a cada segundo. Se o mundo da razão já é uma prisão de grades invisíveis e cheio obstáculos morais, aprofundamos nossa detenção e nos trancamos fielmente no mundo binário e desconectamos a mente do corpo que não vive mais, somente acretida que já não sonha.
A filosofia se transformou num livro de lições de alfabetização. Do A ao Z. Caminho Suave. A racionalidade copiadora. Os trabalhos de pesquisas são quadros que começamos a pintar pela moldura; claro, todas bem pré-fabricadas. Devem combinar com os móveis da sala e não atrapalhar os jornais da TV. A árvore contaminada pelos fertilizantes racionais não pode gerar o fruto que solucionará a crise que nos cerca. Mas quando não houve crises?
Não podemos alcançar o orgasmo pela razão. Somente os patológicos. A irracionalidade dos tambores contrasta com a lógica fria do psicopata que amplia a razão e a lógica porque as denota. O mundo ainda está em queda livre nos abismos da conotação da racionalidade, enquanto que o psicopata, na eterna vanguarda, as pratica sem pudor. Ele tem os pés firmemente plantados no chão, mas não tem asas.
Nietzsche, oh venerável Ícaro pós-moderno, continuas a voar como a um fantasma sobre a aldeia que sepultou Zaratustra, um túmulo que não recebe flores. Por que fostes tão ingênuo a ponto de querer atrelar a razão aos próprios desejos e tentar ser mais que o macaco, o palhaço, o poeta e subjugar a lógica diante dos próprios sonhos? O sol que derreteu suas asas se chamava Dostoievski, Victor Hugo, Dom Quixote. – Mas não me questionarias com anseios de quem pode me pegar no contrapé das ideias, quando desenterro o quixotismo? Fique à vontade, pois sua contra-argumentação seria um Ledo e Ivo engano, oh! Ícaro prussiano. Quixote é só a ilusão da razão sobre o pesadelo da razão. Ou a ideologia impregnada de escatologia para um final apoteótico e racionalmente justificável da raça humana.
O que nos sobra? A música talvez. Acordes, harmonias e melodias. Sereias que chamam o nosso barco para a única dignidade possível: o despedaçar-se nas pontas dos rochedos, para que possamos seguir nesse fluxo material do qual o universo é constituído. Uma ode às não-identidades racionais e um glorioso sim às explosões de esquecimentos de uma história tão longa e desejosa pelos domínios do irracional. Se Deus é um monumento à racionalidade, segundo Tomás de Aquino, o universo é a própria revolta quântica não-euclidiana.     
Aquino, Kant e Comte são os forjadores dos grilhões que nos prendem ao patético, ao monumento da inflexibilidade sobre o ‘continuum’ relativo. São os cavaleiros refratários, os sedentários da ordem organizada. Mas eis que vejo em meio as sereias seu gigolô de terno e gravata, chapéu em mãos, o príncipe do antiabsurdo racional. É Camus, que ora ao Ícaro prussiano e permite que as sereias cantem sem medo e se lancem em nossos braços, a custo nenhum.
A queda na razão é a própria tragédia. A razão aponta pros sete pecados capitais, é sua apoteose. Seguiremos, não há outro jeito, como Odisseu, preso ao mastro da nau racional, mas com a alma em viagem vertiginosa pelo canto das sereias. Nos tornamos binários/contraditórios. Caímos e não há mais volta, não há mais razão e possibilidade para buscarmos a ascensão ao olhar inocente da felicidade sobre o mundo. Já não somos os mesmos, como éramos no princípio e isso é lógico, racional e definitivo.