terça-feira, 2 de outubro de 2012

Os blocos de carnaval, os moinhos de vento e o Cony




O Mago é a carta número 1 do Tarô, que tem como característica a manipulação das ilusões diante de uma platéia que pensa estar olhando pra realidade. Um Bloco de Carnaval é isso: um aglomerado de Magos, todos ansiosos e inebriados pelos próprios sonhos a ponto de acreditar que as ilusões, ‘as que deveras sonham’, são verdades àqueles pra quem o bloco se apresenta.
Certa vez imaginei um Bloco de Carnaval que tinha o inusitado nome de Filhos de Onã, uma conotação debochada sobre a auto-suficiência sexual dos adolescentes em ebulição, os ávidos e eternos leitores da revista Playboy. Mas um amigo, Alício de Areias, jogou água no projeto. Disse que era um paradoxo, — disse isso enquanto gargalhava —, pois Onã, na Bíblia, fora condenado por desperdiçar o esperma sobre a terra e, em seu caso específico, ‘por não permitir a transmissão a nenhuma criatura o legado de nossa miséria; e com isso não teve filhos’.
Ainda tentei salvar a ideia, o conceito do Bloco que vislumbrava. Vi atrás de um estandarte estampado, Filhos de Onã, uma horda de Brás Cubas esmerilhando o chão com passos de bailarinos bêbados, magníficos foliões. Atinei depois, enquanto Alício ainda sorria, que o enredo era complexo por demais, muito pior do que os das escolas de samba do Rio de Janeiro. Necessitaria de um carro de som para explicar ao venerável público a proposta do Bloco, o que tornaria o treco todo inviável.
Pra quem não sabe, Alício tem muito em comum com o roqueiro Ozzy Osbourne, que em pleno show do Black Sabbath agarrou um morcego e o arrancou-lhe a cabeça com os dentes. Dizem que era de plástico, mas na dúvida, o roqueiro tomou todas as antitetânicas indicadas para tão exótico paladar.
Se engana quem pensa que Alício comeu algum morcego. Não, ele inalou a poeira de uma Caverna temperada com restos orgânicos fisiológicos de morcegos, numa excursão pedagógica que visava a análise in loco de estalactites e estalagmites. Resultado: pulmões cheios de bactérias; foi salvo pela alopatia e pelo consumo de carne. Over dose de proteína para melhor absorção dos remédios. Para um homeopata e vegetariano de carteirinha foi a profanação mor de seu templo, mas que lhe salvou a vida.
Passados o susto e o tempo, fui eu quem bateu na quina do túmulo e retornou pra vida, onde numa noite, há mais de dois anos, minha pressão arterial conseguiu a fantástica cifra de 22/21, e eu não estava sentido nada de anormal. ‘Foi infarto?! Foi! Não foi! Foi! Não foi!’. O fato é que sobrevivi. Tudo culpa da boca, que não se cansa de carne, cerveja e derivados. E foi aí que surgiu meu segundo Bloco de Carnaval.
Dentre os vários remédios que tive que passar a tomar, tinha um que se chamava Alopurinol e de tanto pronunciar seu nome me veio à cabeça uma derivação onomatopéica para o remédio, e que por acaso, ficava bem como nome de Bloco de Carnaval: Alô, urinol! Só o nome já me bastou para a criação de um enredo: foliões com penicos 1,99 sobre a cabeça, como o Elmo sagrado de Dom Quixote, barbicha no queixo, e bacias no peito como escudos. As lanças seriam aquelas vassouras de limpar latrinas.
O samba teria no refrão o apelo ao amor de Dulcinéia del Toboso; no restante da letra, a narrativa das lutas dos foliões contra os moinhos de vento, que na verdade são monstros que teimamos em ver como moinhos inofensivos. Carlos Heitor Cony, um dos mestres de nossa literatura, sabe muito bem disso. Ele tem um fiapo da pele de um moinho guardado num diário secreto, onde registrou certa viagem que fez para Espanha, em plena Mancha, terra de Quixote. Comprovou que os tais moinhos são, realmente, monstros disfarçados de moinhos. É que estamos todos cegos, como no Ensaio sobre a Cegueira, de José Saramago: “...e se fossemos todos cegos?”. 
      Às vezes, em meio 'aos delírios do cotidiano', me vem à cabeça imagens, cenários de sonhos, que não sei mais de que fontes são originários. Algum filme, algum carnaval, uma reportagem, sei lá! Me esforço na busca do fio do tempo que costura os quadros da memória, uma vã tentativa de veneração e obediência ao deus Cronos, à busca da origem onírica dessas 'minhas imagens', mais o significado, além dos motivos pelos quais foram forjados. 
      Eis-me a negar Heráclito, pois entro várias vezes no mesmo rio das lembranças, na topografia da memória, e solto as velas do barco e o deixo navegar por mares de sonhos 'meus', que já nem sei mais por quem foram criados, ou dos motivos de suas edificações. Seus lastros conotativos desapareceram, mas os cenários ainda estão vivos, despreocupados com a realidade. Abrigos para que se possa fugir da 'loucura'.