sábado, 20 de setembro de 2014

Contos absurdos: o céu através da garrafa de vinho



        Bem-te-vi: Pitangus sulphuratus

Havia mais um pássaro perdido no chão. Pensei que se tratava só de um filhote de bem-te-vi, mas eram dois, solitários, lutando pela vida. Eu sabia que não iriam permanecer vivos, que não conseguiram voar! A mãe e o pai alimentaram os filhos até onde foi possível. Eu fiz o que podia, deixei de frequentar o quintal, fiquei longe da imensa árvore, a Mangifera indica, que já anunciou suas frutas de verão, a manga, a mais sexual de todas, onde se lambuza até a alma, sei que ela orou pelos filhotes e também nada pode fazer para salvar os dois. Desfolhando-se toda, a Mangifera salpicou o chão de confetes triangulares e o vento zumbiu macio em sua copa. Oh! Sidarta, a morte foi o melhor para os pássaros? Sim, a existência foi benevolente! Quem lhe disse isso? Darwin.
E foi dessa forma que pude entender que a consciência não mente, ao contrário, sabe que tem de dizer coisas ao inconsciente. E este sim, de olhos bem fechados, permanece sem saber da verdade. É que somos primatas dançando na chuva, enquanto o sol atravessa o céu e sem se importar com quem se aquece em sua força vital, advinda das explosões atômicas de suas entranhas. Quanta carne o sol já devorou? O quanto ainda poderemos nos devorar, até que o equilíbrio se desfaça e eu já não consiga mais controlar o poder de esquecer? Sidarta, o que devo fazer? Entender que as relações efêmeras têm sabores de eternidade! Tal como o desejo que tenho de que os dois bem-te-vis tivessem sobrevivido? Sim, como querer dançar aquela canção que você nunca mais ouviu porque está num vinil. Ao tocá-la, nos poucos minutos, tudo será eterno? Sim, exatamente! Sartre já disse isso! Mas ele jamais poderia saber que você se apaixonaria pelo sal da vida?
A chuva lavou a tarde. O céu transmutou-se na direção de uma escala cromática do cinza plúmbeo e eu o olhei através da garrafa de vinho. É o vinho que me fará viver mais, para que possa esperar o dia em que nada terei de fazer, a não ser, ser seu eu mesmo, e sentar-me-ei num banco sob as árvores e pensarei nas vezes que sonhei ter dançado abraçado a ela, enquanto Beck cantava que nada se poderia fazer contra as forças da Terra, e que o diabo sempre nos seguiu de perto, ansioso pra alcançar seu quinhão. Então ele saberá que o mantive longe graças às palavras de Singer.
Olhei a imagem mediterrânea do filme sobre a ilha do esquecimento. O lugar de onde eu vim. Sempre que o vejo, sinto que estou impregnado daquela paisagem, como se não pudesse estar em outro lugar, senão naquele chão. Fui um gladiador, um césar, um senador, alguém da plebe, o leão que devorava cristãos, os próprios cristãos estraçalhados na Roma carnívora. Fui também o antes, o Odisseu, a Tróia, um dos filósofos que negaram a deus ao declarar amor a Terra; também sei das prostitutas do caís de Atenas. E é esta parte que faz você mais gostar de mim. Mas devo dizer que Sidarta não concorda. Por que, meu príncipe? Quando um homem puder sentir o amor, tal como uma mulher, será então um deus! E eu sou apenas...?! ...apenas uma lata de lixo ocidental. 
Cat Stevens desenhou uma lata de lixo na capa de um de seus LPs. Depois foi internado. Precisava se desintoxicar. Nunca mais foi o mesmo. O que faremos, Beck? Tomaremos vinho como desejou Epicuro. Ei, Sidarta, está servido?

aos poucos, mas maravilhosos leitores desse blog, agradeço e peço desculpas pela fixação com os mesmos temas: Sidarta, Beck, o amor, a ilusão e o destino que, não existindo, é sempre presente. É que não consigo parar de ouvir: nobody's fault but my own, do bom e velho Beck, que fala da existência, seu sentido, do diabo em cada um de nós e que não é culpa de ninguém. O que seria de nós sem o eu-lírico? Abraços!