Eu e o bom amigo, Orson-Wells, estamos escrevendo uma Ópera baseada numa história do folclore nordestino: O boi misterioso, que transformamos na Óperra do Belzebu; incluímos entidades do Norte também, afinal, todo delírio é permitido. Fiz, do roteiro da Ópera, um conto, uma narrativa para nos orientar na fabricação das canções e dos instrumentais que ocuparão os interstícios da 'estória', além dos diálogos dos personagenes.
I
O Belzebu
Sem que ninguém soubesse como, assim no meio da
noite, apareceu um boi negro no meio da rua. Mugia igual a um leão sonhando com
o gosto da carne nos dentes. Nada no céu ou na terra poderia se colocar de
frente àquela força bruta que corria de um lado pro outro em busca de conflito.
Os habitantes da cidade, todos cristãos, olhavam pelas frestas e janelas aquela
criatura negra e chifruda raspando as patas na terra. Rezavam para que um vaqueiro herói lhes
salvasse a pele, abismando de volta o boi às profundezas das quais nascera.
Mas em vão, nenhum temente a Deus saiu do conforto
da casa para enfrentar o mal. Ocorreu, de repente, um grito seguido de um
estalo, um relâmpago, onde havia anos que não chovia, fora visto; depois um
trovão de céu limpo, e o boi, sob os poderes de um feitiço, ficou sobre duas
patas e se transformou num homem de terno branco, bigode e espingarda em punho.
O recém nascido da fera gritou tão forte que até o silêncio se assustou: “Já que aqui não tem homem, só cristão
frouxo rezadô, sou eu quem vai mandar e pronto!”.
E em pouco tempo na cidade, as melhores terras, a
melhor casa, os melhores animais e o poder de dizer sim ou não passou a ser
propriedade do Coroné do Negromonte, que tendo aparência de homem por fora, por
dentro era a alma do próprio cramunhão. O padre, com medo, lhe fez honras; os
vereadores, com mais medo ainda, criaram leis que regulamentava seu poder; as
famílias mais importantes, sempre que lhe encontravam, faziam-lhe referências:
os homens tiravam o chapéu e as crianças lhe diziam: “bença, Coroné!”. – As
mulheres eram só risinhos e olhares travessos.
Das sombras das lamparinas brotaram os jagunços do
Coroné. Andavam armados ao redor dele e nunca sorriam. Ninguém olhava
atravessado para o poder das trevas que agora caminhava sobre as ruas e
determinava o funcionamento do mundo. Mas poder e prazer nunca são o suficiente,
então o Coroné anunciou ao mundo: “... filhos meus, escravos meus! Vou me
casar! Quero zabumba, sanfona e baião! Também quero o amor da mais bela flor.
Que ela venha até minha casa ‘inda’ hoje, antes que o sol se deite e diga, com
sorriso na cara, que será minha esposa!”.
Na igreja o povinho da reza e das novenas obrigou
o padre a ir até a casa de Maria, a que o noivo havia fugido com a chegada do
boi, pra dizer que ela era a escolhida pra ser noiva do Belzebu. O noivo que
Maria tinha, pobre moço, fora tomado por uma bateção de dentes quando o boi apareceu
na cidade, foi tanto medo que adquiriu um vento gelado na alma e não pensou
duas vezes, que Maria ficasse pra trás. Dessa
forma, a pobre moça nada pode fazer quando o padre lhe disse que era ela a
escolhida pra servir o Coroné. E era melhor ela obedecer, senão toda a cidade
pagaria o pato.
Maria chorou em silêncio. Mas antes de se
apresentar ao Coroné, jogou no rio uma garrafa com um bilhete dentro, para que
alguém pudesse ler sua trágica história e vir lhe salvar. Feito isso, postou-se
resignada diante do homem mais poderoso da cidade, em meio aos festivos olhares
dos subalternos mais importantes da corte de Belzebu e anunciou estar disposta
a se casar com ele. O Coroné gostou do que ouviu e em seguida berrou: “O
casório vai ser daqui a sete dias!”.
II
Iara
A garrafa seguiu pelo minguado rio. Talvez guiada
pelas mãos de anjos, ou pela providência, venceu os obstáculos e depois de um
dia inteiro e uma noite rasgando a vastidão, adentrou um remanso cercado por
árvores e pedras.
Iara, mãe-d’água, com seus cabelos verdes e
profundos olhos castanhos, morava ali. Enquanto a lua banhava as águas e ela
esperava por mais uma vítima de seus encantamentos, encontrou a garrafa e leu o
bilhete. Foi tomada por um sentimento de impotência. A bela Maria nas mãos de
um Coroné das profundezas infernais. Talvez ela pudesse ajudar. Malditos eram
os homens.
E foi desse jeito, numa conjunção astral
estonteante, que o matuto Marimbondo apareceu nas margens do logo, para aliviar
a sede de seu rebanho de cabras, bem na hora em que Iara lia o bilhete de Maria.
Ele sabia que ao se deparar com os belos olhos castanhos da Iara, isso seria
seu fim. Seria aprisionado e não poderia nem rezar pela própria alma. Tinha
conhecimento das histórias que contavam a respeito dela. Em poucos minutos morreria
de tanto prazer, diante de tanta beleza, que nem iria perceber quando Iara
cravasse suas garras em seu corpo e o levasse para as profundezas do rio.
Menos mal uma morte cheia de prazer. Melhor do que
morrer com a boca seca, vendo a terra rachar de tanto sol. Quem negaria a
nobreza desse destino? A beleza da Iara valeria o encontro definitivo com a
morte. Aqueles cabelos verdes profundos, os belos olhos castanhos, os seios
fartos, a pele lisa e perfeita, a voz agradável e macia era o que Marimbondo
havia visto de mais belo no mundo. Quem poderia dizer que não havia
misericórdia nessa vida? Suas cabras ficariam ao léu, mas era assim mesmo o
destino dos órfãos.
Mas quando estava nas mãos da Iara, flutuando nas
águas, saboreando o entorpecimento da sedução fatal, se assustou por ela parar
o feitiço de repente pra lhe dizer: “... você precisa subir o rio e salvar essa
moça das garras do Belzebu!”. Em seguida mostrou o bilhete. Marimbondo não
sabia ler; então ela explicou o caso. Ele se apequenou depois de ouvir do que
se tratava. Como poderia enfrentar o Belzebu, ele, um pobre criador de cabras?
Melhor do que explicar, era agir. Iara extraiu
poderes da lua e transformou Marimbondo num homem forte, com peito largo e voz
grave. Deu-lhe o nome de Virgulino. Tirou do fundo das águas uma espada e um
facão bem afiados e disse-lhe que tinha pouco tempo, e que fosse logo salvar
Maria das garras daquele monstro. Mas antes Virgulino indagou: “ Você me
transformou num homem forte, num herói. O que faz a senhora acreditar que não
vou fugir pra outro canto e nunca mais vou voltar aqui e muito menos salvar
essa tal Maria?”
Iara sorriu e o alertou: “Em sete dias você vai
virar um bode e passar o resto da vida comendo capim. A não ser que você faça o
que eu mandei você fazer e volte aqui pra eu desfazer o feitiço! Vai! Vai! Já tá
perdendo muito tempo!”. E assim Virgulino se foi. Ou vencia Belzebu, ou seria transformado
pra sempre num bode. Agora sim o destino lhe aplicara uma boa peça.
Iara ficou olhando aquele homem forte subir o
riacho em direção à batalha. Também não sabia de onde tinha tirado o desejo de
ajudar aquela pobre moça, já que não sentia pena de ninguém.
III
Virgulino
Virgulino subiu o rio e em menos de um dia e assim
chegou ao reino do Coroné Negromonte. A cidade estava enfeitada com
bandeirinhas; o povo vivia o preparatório do casamento. Maria permanecia em sua
casa, cercada de beatas que lhe preparavam tudo e pareciam muito felizes; as
crianças corriam pela rua; os homens bebiam no bar junto do Coroné, que
esfregava as mãos em sinal de alegria ansiosa; logo teria sua mulher. Ele dizia
aos homens, seus admiradores, que não ficaria somente com uma esposa, tinha
calibre pra mais de três. E que com todas elas, sem exceção, iria se casar na
igreja e com a cruz de cabeça pra baixo no altar, porque ele era
senhor do mundo, não o tal de Jesus Cristo. Alguém mais corajoso o lembrou, em
meio a conversa do bar, que a Igreja só permitia um casamento. Ele deu um murro
no balcão e anunciou que o Papa teria de mudar essa lei. E todos concordaram.
Mas o assunto foi desviado. O ar ficou tenso. Um
estranho silêncio veio das ruas pra dentro do bar. Na entrada principal da cidade, no mesmo lugar
onde o boi havia aparecido, um homem com espada e facão em mãos anunciava um desafio
ao Coroné. Gritou com todos os pulmões e pra todo mundo ouvir: “... soube que
aqui tem um boi chifrudo que tem fama de valente. Vim aqui pra arrancar o couro
dele e colocar um lacinho cor-de-rosa na ponta do chifre. Cadê a besta?”.
Ao ouvir essas palavras, o Coroné bufou feito um
demônio e saiu em disparada. Era uma mancha negra correndo em meio à poeira da
rua. Foi outro corre-corre. De novo o cramunhão era um ser na forma de um boi. Quando
chegou cara a cara com o desafiante Virgulino, olhou bem dentro dos olhos dele
e o atacou sem misericórdia. O barulho da espada e do facão batendo nos chifres
assustou o povo. Maria, sem saber o porquê, sentiu uma ponta de alegria no
coração. E isso ocorreu antes mesmo de um menino entrar correndo em sua casa
pra dizer que um estranho, que há pouco chegara à cidade, havia desafiado o
Coroné prum duelo. Todos na casa de
Maria foram todos pra rua, em direção ao campo da batalha; ela de vestido de
noiva e as beatas rezando pro Coroné!
Maria ainda teve tempo de ouvir o segundo berro de
Virgulino: “ ... e o inferno te espera, cramunhão de uma figa!”. Feito um
toureiro das longínquas terras andaluzas, Virgulino bailou diante da fera até
que lhe cravou a espada na corcova e depois o facão no meio da cabeça, rasgando
o osso do crânio e trespassando a ponta da lâmina no pescoço. O barulho da
carne batendo no chão tremeu a alma dos moradores. Belzebu estava morto. Enquanto
todo mundo chegava pra contemplar o corpo morto do boi, a molecada explicou a
Virgulino quem havia tomado partido do coisa-ruim ao longo de seu reinado de
terror.
Era gritaria pra todo lado. Agora iria começar
outra festa. Maria chorava de alegria. Mas antes que todo mundo usufruísse na
nova situação, Virgulino berrou mais uma vez: “... e pelo o quê me contaram, é
preciso que se faça justiça: as terras do Belzebu serão dividas igualmente pra
todos!”. Virgulino ainda disse mais: “... o padre, que aceitou colocar a cruz
de cabeça pra baixo, vai sumir daqui, senão corto as tripas dele!”. Em meio à
comemoração da maioria, o padre saiu de fino. E Virgulino ainda finalizou: “Dos
vereadores não quero ver fuça de nenhum, senão vamos ‘fuzilá’ a cambada na
parede da igreja!”. O povo era um delírio só; vereadores sumiram.
Maria não teve tempo de agradecer ao herói que
logo saiu da cidade, mas não antes de cortar os chifres do Belzebu para mostrar
a Iara que tinha cumprido sua missão. Tinha uma viagem de retorno e não podia
perder tempo. Dormiu uma hora embaixo de uma árvore, às margens do rio e depois
de dois dias de viagem, chegou ao remanso da sereia carregando os chifres da
besta. Iara olhou o que havia sobrado da fera e depois jogou pra longe, pra que
os cães fizessem a farra. Depois olhou pro Virgulino e o dispensou: “Vá, antes
que eu mude de ideia!”.
Mas Virgulino não pode se conter e lhe disse:
“Você é a mulher mais linda que eu já vi. Quero me deitar com você, nem que
isso custe minha vida!”. Iara sorriu e gostou da coragem do homem que ela havia
criado. Sorriu plenamente e mostrou-se receptiva. Chegou mais perto dele e lhe
beijou com o hálito mais puro que Virgulino já tinha sentido. Deitaram-se na
areia às margens do rio. Era uma areia limpa e confortável. Enquanto ele teve
forças, manteve o corpo da Iara colado ao seu e a beijava ardentemente enquanto
ocorria o coito.
Quando não pode mais conter-se, derreteu-se de
prazer. Seus olhos viram estrelas distantes, seu corpo sentiu o sol das manhãs
primaveris e um gosto de mel tomou-lhe o paladar. Na hora em que voltou de novo
a si, percebeu que estava no fundo do rio. A água transparente permitiu que ele
visse a lua lá no alto do céu. Depois sentiu os dentes da sereia em seu ventre
e a água ficou vermelha. Mas ele sorriu. Depois tudo ficou escuro sem fundo e
veio um silêncio calado com gosto de morte. Depois mais nada.
As cabras, pobres órfãs, ficaram nas margens do
rio olhando Iara nadar em plena felicidade. Ela tinha sangue na boca e agora só
queria se deliciar com o luar e o frescor do rio.