quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Tá russo, mano!





A lição é amarga e a mídia brasileira não aprende. Nos últimos anos tornou-se comum o desejo de desconstruir o PT com matérias mentirosas, análises falso-moralistas, críticas insanas e afetos mais. Apesar do alvo ser o Partido do Trabalhadores, a mídia nacional (Veja, Folha de SP, Estadão, Globo e similares transgênicos) endereçou também seus torpedos às políticas sociais e ao ‘politicamente correto’, tido pela ‘intelectualidade’ como sinônimo de ‘petismo’.
E é nessa hora que a espingarda do Mazzaropi tem uma mira mais eficaz do que o faro e as articulações dos ‘Jabores’ da vida, que dizem qualquer besteira temperada a fascismo, na busca de um bom salário global.
As balas da mídia não sortiram o efeito esperado por ela mesma. Atacar ao PT e suas propostas, mais o pensamento progressista, — que não é exclusividade do petismo —, não desencadeou o crescimento do PSDB, partido xodó do jornalismo tupiniquim-americanófilo. E o preço foi alto. Quem mais saiu perdendo fomos todos nós. Vide em São Paulo o crescimento do candidato Russomano.
Russomano vem pela via evangélica, ancorada pela Igreja Universal do Reino de Deus, nada tenho contra as Igrejas, mas não concordo com a linha de pensamento que têm sobre assuntos da Sociedade Civil. O Estado é laico e assim deve ser. Dessa maneira, a maior de nossas cidades pode estar a ponto de instaurar um modelo de administração pública calcado em valores Medievais. Ah! Como São Paulo é moderna! O que Oswald e Mário de Andrade não diriam se estivessem vivos?! A Paulicéia, antes Desvairada, quer ser agora ‘Medievalizada’, ou ‘mervalizada’; aquele colunista patético da Globo.  
O tiro equivocado da mídia, nas idéias progressistas, resultou na ‘re-criação’ de um Frankstein do conservadorismo paulistano, hoje encarnado por Russomano. E só agora a Globo & derivados entenderam que, a eterna Cruzada contra as idéias progressistas e à figura de Lula, ao longo desses anos todos, criou o ambiente favorável para multiplicação de seu maior inimigo: Edir Macedo e a Rede Record.
A ficha caiu quando a rejeição a José Serra alcançou 40% do eleitorado, nessas eleições municipais. Apenas lembrando: a outra ‘jóia’ da mídia é FHC, que terminou seu 2º mandato de presidente com extraordinários 75% de rejeição. Por que a Globo & derivados gostam tanto daquilo que o povo abomina? O povo, penso eu, numa Democracia, tem certa relevância.
Bem, mas agora Inês é morta. A cidade de São Paulo está cega, surda e prestes a abraçar as trevas e isso de tanto ouvir a mídia com seus ‘faróis’. Momentaneamente incapaz de entender o que dizem Haddad, Chalita, Soninha, as vozes do Pensamento Progressista, serão eles mesmos, os paulistanos, os maiores sacrificados, caso não haja uma mudança significativa no 2º turno.
No mais, quero agradecer a Haddad por ter sofisticado o ENEM, diga-se de passagem, criação do PSDB. A integração do acesso ao sistema federal de ensino superior foi uma das grandes transformações desse país. E digo isso com base em minha própria história. Eu, o filho de um mecânico, que teve que trabalhar para pagar seus estudos noturnos, teve a grata satisfação de ver o filho caçula, através de uma prova do ENEM, feita em Cruzeiro, concorrer por uma vaga em todas as Universidades Federais do país, e com isso sonhar com um futuro melhor. Hoje ele estuda na Universidade Federal Paulista, no curso de Ciências.
Pra quem se esqueceu, Haddad foi ministro da Educação do Governo Lula. O governo que mais abriu Universidades na História do país. Mas há ainda bastante gente desinformada a ponto de dizer que o Lula não gosta do estudo e do ambiente acadêmico. Foi com Lula que aprendi algo que nunca me ensinaram na escola: se você vive de salário, vote sempre num partido sindical. A elite nunca vai fazer algo, politicamente, que nos torne mais classe média, enquanto ela passa a ser menos elite. Por que ela faria isso por nós? Afinal, isso acarretaria numa redução de seus lucros exorbitantes. 
      E interessante: é a elite quem mantém a mídia, que quer destruir Lula, com o dinheiro da propaganda. Será que isso tem alguma relação?

domingo, 9 de setembro de 2012

O Carnaval





“..a salsicha está chorando pela morte da lingüiça, no meio do macarrão!” Meu tio ‘Vito Mello’ (Francisco de Paula Victor) cantava isso pra gente, quando éramos crianças, um bando de primos ao redor do tio pra melhor entender o mundo, nas manhãs de sábado, na casa da avó. O verso era uma adaptação do mais belo clássico do Carnaval, Máscara Negra, “...tanto riso, oh! quanta alegria, mais de mil palhaços no salão...”. Obra do grande Zé Kéti.
Em tempos passados, sabíamos que o Carnaval era uma festa em que se usava as máscaras para que a celebração da carne se perdesse num universo de estereótipos e tudo, inclusive os pecados cometidos no salão, se diluísse como numa trama teatral. Os corpos, poeticamente, escondiam suas identidades verdadeiras atrás dos anseios dos personagens e, enquanto isso durava, a carne usufruía do prazer. Findada a terça-feira dourada, tirava-se as máscaras e amanhecíamos puros.
A devassidão evaporava nas fantasias que eram guardadas em gavetas profundas, túmulos que só seriam abertos na próxima estação, onde o Pierrot, a Colombina, o Arlequim, o Pirata, a Odalisca poderiam ressuscitar para o retorno da renovada festa da carne.
Já nos carnavais modernos ocorre o contrário. O pau canta, literalmente, com o consumo de drogas e álcool ao limite, violência, descaso, poesia morta, música de péssima qualidade, encontros religiosos fora de hora, exploração consumista fútil, vide desfiles de Escolas de Samba no Rio de Janeiro.
Inverteu-se a lógica: tira-se as máscaras no Carnaval e a besta fera, reinante nos homens pós-modernos, barbárie à base de especulação financeira, explode e se apodera do mundo. Findada a terça-feira, coloca-se a máscara do homem comum sobre a máscara do homem-besta-fera, que é o próprio rosto de quem se olha no espelho para viver o dia-a-dia.
Sem poesia e teatralização não há Carnaval. Se engana quem pensa que a finalidade dessa crônica é o saudosismo e/ou um discurso falso moralista. A Fantasia dos Carnavais que nos formaram, com seus foliões mascarados e canções inesquecíveis, tinham um objetivo quase que pedagógico, pois projetavam a Humanidade num mundo de sonhos, que saboreados, resultavam em poesia. Ao retornar a Terra Cotidiana, no pós-quarta-feira de cinzas, era inevitável que passassêmos a entendê-la como um lugar que poderia ser sempre melhor. Menos burocrática,  menos institucional e definitivamente humanizada.  Esse sempre foi o efeito das bênçãos de Dionísio, o deus do vinho e das festas dos mascarados; esse é o papel da ficção carnavalesca.
A inversão da lógica na Fantasia do Carnaval moderno, pelo contrário, não é sinônimo de avanço cultural: invadir os territórios dos sonhos com a realidade, só nos fará mais bárbaros e bestas-feras. O Carnaval não é vídeo game de Guerra que acontece no Iraque, com algum anglo-saxão no comando, que normalmente não entende nada de samba. Precisamos de mais caipirinha e samba; menos uísque com red-bull e raves à base das mesmas batidas: Bum! Bum! Tum! Tum! Que não dizem nada.
A morte da teatralização, e de sua trilha sonora, tem suas conseqüências nefastas para vida sobre a Terra. Os exemplos estão em toda parte: o funk: uma música para quem não gosta e/ou sabe o que é uma música; Zorra Total no lugar dos livros e das peças de teatro; máscaras de santos no lugar da face de Dionísio; Armas, socos, carros dilacerando carne. Patético se não fosse decadente.
“Atravessando o deserto do Saara, o sol estava quente e queimou a nossa cara”. E nessa hora, ao ver a morena de olhos verdes, me lembrei que sempre quis beijá-la. Então a convidei para bebermos uma cerveja gelada:
— O que você acha?
— Mas eu sou noiva!
         ...— Se colocar a máscara da Colombina não será mais e até o fim do baile!   

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

Os mestres de Lagado



A Universidade de Balnibarbos, país visitado por Gulliver numa de suas viagens, é conhecida como Academia de Lagado — Lagado é também o nome da capital de Balnibarbo. O viajante mais extraordinário da literatura ficou abismado com a maneira como a razão e a lógica eram maltratadas no local onde deveriam ser respeitadas e amadas pelos ‘mestres’ daquele mundo. E como a tolice é contagiosa, o estrago acontecia também com as Artes, que sofriam drasticamente uma metamorfose dita ‘evolutiva’. Num curso de Artes, por exemplo, Gulliver constatou ser comum começar um quadro pela moldura, e só depois chegar ao desenho propriamente dito, que é um mero detalhe, segundo conceitos de seus especialistas, e não a essência dessa expressão.
O mais agravante nisso tudo é que a Academia de Lagado, não satisfeita com a ação de seus ‘gênios’ em seu país, passou a exportá-los para onde houvesse necessidade de avanços civilizatórios. Conseqüência: há muito eles estão no meio de nós e ‘quase’ não percebemos mais suas ações, o que pode ser perigoso. Só que é relativamente fácil identificar um ‘mestre’ que veio de Lagado: postura altiva, posse da verdade e crença dogmática no próprio currículo, além de não enxergar um palmo à frente do nariz.
Foram os engenheiros de Lagado que criaram a concepção de como se pode aumentar a potência das rodas d’água: uma caixa d’água deve ser construída no alto de um morro, depois é só bombear a água do rio pra enchê-la. Terminada a primeira parte, deve-se construir outra roda d’água no alto do mesmo morro; basta abrir as comportas da nova caixa d’água e a gravidade faz o resto. Não sei como não pensamos nisso antes! Mas o fato é que essa patente é de Lagado. Imagine se algum gênio resolve adaptar tal processo na construção de uma hidrelétrica?
Em termos de precisão histórica, é possível indicar o início da atuação dos mestres de Lagado em nosso mundo. Mas acredita-se que eram eles que, em plenos anos de 1990, já estavam à frente do maior volume de exportação de milho que o Brasil conhecera até então. Ocorreram festas, reportagens nas TVs de todo o país, a ponto de Fernando Henrique Cardoso, então presidente, fazer discursos sobre a felicidade das exportações do milho.
Nem bem encerradas as comemorações, veio a notícia de que o Brasil exportara todo milho que tinha e precisava importá-lo de novo para a produção da ração dos rebanhos bovinos, suínos, caprinos e galináceos mais. Hoje se tem certeza que os mestres de Lagado tinham forte influência no governo Fernando Henrique. Mas graças aos céus, esse tempo passou.
Mas se engana quem pensa que os mestres de Lagado voltaram pra Balnibarbos após o fiasco do governo FHC. Muitos se tornaram engenheiros da petroleira ‘Chevron Desastres Ecológicos Marítimos S.A.’, alguns passaram a ministrar aulas em cursos de mestrados e doutorados, mundo afora, — e isso graças a um acordo internacional com a ONU.
Ainda tem mais: uma quantidade considerável tornou-se parte ativa da jurisprudência do Direito mundial. Há também quem diga que foram os mestres de lagado que projetaram a usina nuclear de Fukushima, no Japão, à beira mar e sobre uma fenda tectônica. Alguns mais privilegiados, de maneira secreta, se tornaram conselheiros dos investidores da Bolsa de NY, mais precisamente em 2008.
Não quero ser pessimista, caro leitor, mas este cronista pangaré que lhe escreve tem a obrigação moral de dizer a verdade. Eles, os mestres de Lagado, estão em toda parte e não é possível tapar o sol com a peneira. Acredito ainda que alguns se candidataram ao cargo de vereador para as eleições municipais de 2012. Estão em busca do sucesso na carreira política. Começaram sujando a cidade com toneladas de papel, ao mesmo tempo em que propagam um discurso à base de promessas para que a cidade seja mais limpa, ética e saudável.     




     

sábado, 1 de setembro de 2012

O amor


Dos quatro irmãos ele ficou em casa e cuidou da mãe. Solteiro, do trabalho pra casa, da casa para o trabalho e durante longos anos. Sabia da rotina da pequena cidade tal como sabia de si mesmo. Olhava sempre pela janela do escritório de contabilidade os mesmos passando pela rua. Um universo de mil e poucas pessoas numa cidade pode ser menor que uma caixa de fósforos. O rádio sempre tocava as mesmas coisas, pois o “dono” da rádio comunitária tinha poucos discos. A estação ferroviária, motivo da cidade ter surgido, era a toca do chefe da estação, de uniforme azul, cadeira inclinada, encostada na parede, cochilando e vendo o movimento nenhum das carroças e caminhões de leite. Esperava apenas pela a aposentadoria.
Em casa Heráclito ouvia as lamúrias e as esperanças da mãe. Velha, muito velha, esperava a chegada das datas especiais para rever os outros três filhos que haviam ganhado mundo. Nos últimos anos as visitas passaram a ser substituídas por telefonemas. Aquele aparelho velho, preto, era o transmissor das desculpas das ausências nas festas de fim de ano. Nada de filhos, nada de netos. Ela só tinha Heráclito. E Heráclito não tinha ninguém.
Suas lembranças se resumiam à infância, à partida dos irmãos, às chuvas que destruíram estradas, à morte de pessoas, cachorros e bois da região. Padres que iam e vinham, trens que, às vezes, mudavam a cidade com seu barulho de universo sendo rasgado. À noite, horário nobre, ele e a mãe saboreavam a eterna rotina da TV. Onde não havia rotina?
Heráclito às vezes se lembrava de seu pai, filósofo de botequim, que havia batizado os quatros filhos com nomes de filósofos. Sempre dizia a ele que o filósofo Heráclito anunciou que não se podia atravessar duas vezes a mesma água de um rio. Tudo mudava constantemente, a água que passava, não voltava mais. A água era o tempo. Assim ele percebia que sua vida era uma contradição: seu nome era uma homenagem ao pré-socrático que defendia o eterno movimento, mas sua vida era a eterna pasmaceira daquela cidade. Vivia na mesma água, sempre. Não era aquilo um rio, mas sim um lago pequeno e raso. Andava no mesmo barro todo dia. Nem a agonia fazia efeito. O domingo, à tarde, era a própria essência de tudo o que era estático. A mais profunda silenciosa dor do mundo.
Mas um dia a dor de Heráclito começou a mudar. É que todo universo por mais extático que possa parecer, também se transforma. É demolido por uma força centrífuga. Suas saídas do escritório eram sempre às seis da tarde. Sempre sob o mesmo crepúsculo, ia solitário, carregado de cotidiano, sem a menor chance de amar alguém. Sabia até mesmo das folhas que caiam no chão, sempre nos mesmos lugares, fazendo os mesmos desenhos. Um dia, sem saber o porquê, entrou na igreja. Antes da Missa a capela ficava aberta e praticamente vazia.  Então ele começou a olhar o que já conhecia e foi aí que conheceu a mulher que mudou sua vida.
Foi na capela paralela ao altar que ele a viu. Vestido branco, com o olhar mais doce que uma mulher pode ter; Heráclito caiu de joelhos. A água do rio, finalmente, havia passado diante de seus pés. Sentiu o mundo girar, a brisa tocou seus em cabelos; era o amor pelos olhos da mulher vestida de branco. Tudo normal não fosse a mulher uma estátua de Santa Clara.
Em casa não conseguiu mais se concentrar na TV. Seu pensamento havia sido tomado pela estátua daquela mulher que a Igreja dizia ser santa. Mas se era ela a parte que lhe cabia nessa vida marasmática, sentiu a ansiedade tomar-lhe o mundo. O travesseiro não lhe deu paz, seus sonhos eram de olhos abertos, salpicados pelo suor da inconformidade por não poder beijar Clara. Ela não era santa, mas sim seu amor. Iria lutar contra tudo, contra todos só para tê-la em seus braços. Um cavaleiro deve destruir os algozes de seu amor, o castelo que a guardava deveria ser invadido. Era preciso buscá-la o mais rápido possível.
Mesmo sem ter dormido uma gota, entrou na igreja e ouviu o sermão do padre. Por coincidência, era sobre o amor de Clara por São Francisco, um amor puro, sem contato carnal, abençoado pela Igreja. Heráclito sentiu uma revolta profunda, ninguém saía dizendo aos quatro ventos que sua amada tinha outro homem, mesmo que esse homem fosse santo. Sua honra fora ultrajada, tinha que desafiar seu concorrente a um duelo. Assim é que se resolviam os triângulos amorosos.
Em seus relatórios só via espadas, cavalos e lanças. À tarde iria libertar sua amada daquela prisão. Precisava de um cavalo, de uma armadura e de muita coragem. Antes de terminar seu expediente, saiu em busca do cavalo. O encontrou-o perto da Estação de trem, pastando no abandono da Rede Ferroviária. Com a crina como rédea, o levou para o alto do morro onde um alpendre abandonado seria seu paiol. Suas armas seriam colocadas ali e ao amanhecer, invadiria a igreja.
Passou a noite em vigília. Um São Jorge a espera para vencer o dragão. Sua mãe não o viu mais, o esperou por toda noite. Escondeu-se na vergonha, tinha medo de pedir ajuda. Se um filho não volta pra casa, é por que algo maior o prendeu. Mulheres, jogo, festa, música, coisas assim. Ela não precisava ligar para a polícia. Mais cedo ou mais tarde os filhos saem de casa. Heráclito havia escolhido sair por último. Sim agora ela estava sozinha. Diante dela apenas uma estrada abandonada que findava no túmulo. Eis a perfeição.
O sol tocou nas lâminas da armadura de Heráclito e como num sinal, desencadeou suas ações morro abaixo, rumo à fortaleza que prendia sua amada. A paisagem passava zunindo por sua cabeça; àquela hora da manhã ninguém presta muita atenção em um homem em sua armadura sobre um cavalo marrom e branco. 
As patas dianteiras arrebentaram a porta da igreja. As ferraduras estalavam no chão de granito. Passou com sua espada em punho diante do altar e com uma só pancada, arrombou as grades que cercavam Clara. Ela levantou os braços e com os olhos em lágrimas, encontrou a garupa de seu herói. Saíram pelos jatos de luz da porta principal. O mundo os esperava, quem poderia dizer que não?
Longe da cidade, sobre um morro verde, Heráclito levantou a tampa de seu capacete e beijou sua amada. A brisa fazia aqueles cabelos claros voarem soltos pelo mundo novo. Os corações batiam forte. Ela não era mais de pedra, nem ele de gelo. Mas no auge, vem a mancha da ferrugem. O sorriso de Clara foi se fechando. Ela olhava pro horizonte. Algo vinha na direção deles. Ela disse que era Francisco. Ele não iria deixar que sua amada fugisse assim, com outro, após séculos de espera. Seria preciso um duelo pra ver com quem Clara ficaria. Heráclito sentiu o mundo todo sacudir seu norte. Não se duelava com santos, inda mais São Francisco. Mas Clara não deu opção a seu cavaleiro. Ou era luta, ou ela ia com o santo.
O tempo girou como numa névoa, o cenário transfigurou-se e eles estavam numa arena. No local do imperador romano, estava Clara. Iria esperar o vencedor para desposá-lo numa longa lua de mel mundo afora.
O gongo soou e os gladiadores se aproximaram. Heráclito levantou a espada e estava pronto para decepar o santo. Quando seus olhos viram os de Francisco, se deparou com tanta ternura, tanta humanidade que todo seu corpo desfigurou-se de uma só vez. Seu sangue irrigava tudo com uma força jamais vista. Não poderia matar aquele homem, aquela simplicidade plantada diante dele, era tudo o que ele não fora. Não era possível atravessar a mesma água duas vezes porque não se podia viver fora do rio, fora do ar matinal que orvalhava o mundo. A espada foi ficando pesada, foi caindo e o mundo desaparecendo. Não viria mais Clara. Uma longa noite se abateu sobre o reinado de Heráclito.
Quando acordou, deparou-se com os olhos do enfermeiro como dois objetos luminosos. Um sorriso brilhava naquela face. Conforme adentrava a razão, percebeu que um outro enfermeiro também estava ali. Então ouviu.
Foi a crise mais forte que ele já teve!
- Com certeza!
É preciso dizer pr’aquele médico novato, que Jimi Hendrix não é indicado a pacientes que vivem aqui.
Deixa que eu falo.