quarta-feira, 29 de março de 2017

Sobre as meias e a maneira de pensar



As meias separam a pele dos pés da aspereza dos calçados, sejam eles sintéticos ou de couro. Para enfrentarmos o mundo, e suas engrenagens, usamos as mesmas meias dos jogadores de basquete da América do norte. São de algodão, têm elástico, podem ser brancas, coloridas e/ou com faixas. Elas aquecem os pés em dias outonais e invernais. - Os homens de negócio que usam terno preferem as meias de poliéster.
Bem, sempre fui criticado em minha família por usar meias ao avesso. Já as mulheres que me viram só de meia, nunca prestaram a atenção nisso. Há algo mais para se ver na nudez exposta na escuridão das alcovas do que a maneira de como se usa as meias. Mas voltando ao tom familiar, 'vestir' meias ao avesso pode ser um sintoma de desleixo e indisciplina. Essa foi a sentença que recebi de meus ancestrais. Do mesmo jeito que não se lia um livro de trás pra frente, ou se entrava num cinema depois do início de um filme, diziam, também, meus familiares, que não se vestia um par de meias pelo avesso. Talvez, quem sabe, numa canção de Caetano Veloso, mas não na vida real, não.
Várias vezes tentei explicar que, para a pele humana, era muito mais confortável que aquela costura toda, feita por máquinas, ficasse em contato com o calçado e que a simetria do lado externo das meias suavizava a vida dos pés e tornozelos. Era uma bela maneira de se evitar coceiras e incômodos, como os causados por aqueles gomos costurados que ficavam entre os dedos dos pés por horas e horas.
Mas o conservadorismo tende a se assustar com pequenas liberdades tomadas por sujeitos insignificantes. Usar um par de meias ao avesso pode subverter as ordem das coisas do mundo e minimizar alguns valores morais tão caros à sociedade e a seu funcionamento hierárquico. Exemplo: um soldado raso é só uma 'coisa' que deve usar as meias do lado certo e não um ser humano que pode optar pelo conforto da pele dos pés.
Se trocarmos o objeto da análise, as meias, pelo amor, veremos que o efeito pode ser quase o mesmo. O amor é como um casaco de pele que vestimos com deferência e orgulho. Talvez seja aquilo que mais nos torne humanos e insuportáveis. Afinal, é uma peça confeccionada pelo tragicômico e inconseqüente espírito de Eros. E diga-se de passagem, por dentro é revestido de espinhos e por fora é liso como a pele de um bebê foca; desses bem branquinhos. Vesti-lo ao avesso o transforma numa arma de sobrevivência, numa armadura capaz de deitar ao chão os espíritos que habitam nossas ilusões e sempre vêm nos prometer o paraíso.
Claro, podemos habitar o avesso de várias vestimentas e trajes. Como no smoking da conversação, por exemplo, um traje que é revestido de silêncio. E ao vesti-lo nos seus contrários, nos livramos da mediocridade dos debates acadêmicos, do discurso idiotizado dos admiradores do Dória-MBL-gestão-padrão-fascista e ignorâncias mais. Adquirimos, assim, a saborosa proteção do silêncio e da invisibilidade; além da possibilidade da fuga permanente da chatice, da monotonia e da falsa educação de salão que nos obriga a saudações e convenções proclamadas pelo status quo. - E também dos imbecis em qualquer situação e/ou idioma.
Talvez por isso se diga, no senso comum, que ao se vestir uma camisa ao avesso, isso corresponderia a um medo (in)consciente de fugir de um provável ataque de um 'cachorro louco'. Dessa forma, se o avesso de tal peça de vestimenta é um amuleto para espantar a loucura de alguns que desejam tomar satisfações sobre a vida que não lhes diz respeito, há pouca gente de camisa ao avesso em função do enorme número de lunáticos à solta. Não sei ao certo o tamanho do diâmetro da proteção de tal amuleto, mas o fato é que, se espanta cachorros e homens loucos, há de ter o mesmo efeito da canja de galinha: se não faz mal, melhor prevenir do que remediar.
Em suma, melhor ofertar o avesso ao público e proteger o lado humano, senão é o pobre homem sincero e humilde quem acaba transfigurado em obsolescência programada e antes mesmo de aprender a dizer, não! Afinal, o inferno são o outros!                                                 

     

segunda-feira, 13 de março de 2017

Diálogo sobre a honestidade de um juiz





Imagem: Aristóteles.

Sócrates se encontra com Coxístenes na praça de Atenas
Coxístenes: Caro Sócrates, te encontro num dos grandes momentos de nossa história! A Justiça, podemos dizer, se personifica. Ela vive e fará nosso futuro melhor.
Sócrates: Sua empolgação me alegra, porque sei que isso é fruto de um sentimento cívico que anseia pela ética, caro Coxístenes. Que os deuses o abençoem.
Coxístenes: E não poderia ser de outra forma, caro Sócrates. Moróclides, nosso juiz, anda a conduzir com maestria processos contra forças políticas populares acusadas de corrupção. Forças políticas que já nos governaram. É o tempo do advento profetizado pelos oráculos.
Sócrates: Que assim seja, Coxístenes. Mas se me permite um questionamento, pois se não o fizer não seria eu o Sócrates, a mosca, que todos já conhecem. E eis a questão: ando a perceber que alguns poderosos políticos também têm aplaudido tal juiz. De certa forma, isso me causa estranheza, e até mesmo preocupação, pois o poder em nossa sociedade se alcança, digamos, nem sempre de uma maneira justa. E claro, logo se torna privilégio. Em termos de ética pública, onde há privilégio político há injustiça. Ou estarei errado, caro entusiasta cívico, ao dizer que um grande número de homens injustos e corruptos se regozija com a ação desse juiz?
Coxístenes: Não, Sócrates, parece que não. A bem da verdade nem tinha pensado nisso.
Sócrates: Então, aprofundemos: além dos poderosos políticos que estão a aplaudir o tal  juiz, estão também os poderosos das empresas de comunicação. Acho que concordaria comigo se eu te lembrasse que tais empresas estão longe de um comportamento moral adequado e agem muito mais por interesses econômicos próprios do que pelo bem da ética.
Coxístenes: Iluminado Sócrates, ainda não tinha observado a qualidade moral do salão que anda a aplaudir esse divino juiz! Isso é grave!
Sócrates: Exato. Entre os réus de tão nobre juiz, está Péricles, homem que lutou contra os poderosos ao distribuir terras, reduziu o poder da aristocracia com o voto popular nas assembleias populares, abriu universidades e programas sociais que reduziram a fome e a miséria. Claro, como homem comum, não está acima dessa mesma lei votada nas assembleias. Mas me parece, muito mais por ‘falta de atenção’ do que por uma ‘abjeta intenção política de nosso juiz’, que nosso sistema jurídico age, nesse momento, com exclusiva intenção de penalizar Péricles. Não como cidadão, mas como força política. Assim sendo, pergunto: seria esse o motivo de endeusamento do juiz pelos inimigos políticos de Péricles?
Coxístenes: Agora me sinto confuso. Não sei mais se ainda sei o que é a Justiça!
Sócrates: Sim, também sinto o mesmo. Mas sei que é extremamente injusto determinar que a única possibilidade de se existir, como indivíduo, seja aquela que possibilita o contínuo enriquecimento dos poderosos. O próprio ser no mundo não é o suficiente para se criar uma política de bem estar social. Muito mais que homens corruptos, um sistema injusto é a própria corrupção personificada pelo desmanche do Estado em prol dos negócios que passam a ser feitos de forma privada, onde antes havia atendimento público social.
Coxístenes: Sócrates, será que a História nos perdoará?
Sócrates: Não sei, a História parece ter sido proibida. Mas entendo que fazer justiça não é destruir a capacidade de um cidadão de fazer política. Não estão desejando apenas a prisão de Péricles, mas a destruição de suas idéias que passaram a ser, também, sinônimo de uma política de Estado de bem estar social. Basta ver a reforma da trabalhista aprovada pelos poderosos que dirigem o governo atual. Confirmada, será uma escultura da injustiça.
Coxístenes: E começamos essa discussão com base na suposta imparcialidade de um juiz que nos levaria à uma Justiça maior. Precisamos avisar aos jornais que tal injustiça ocorre em nossa cidade. Ó Sócrates, eles irão nos ouvir a tempo de corrigirmos essa injustiça?
Sócrates: Às vezes a esperança se confunde com a omissão. E assim afundamos ainda mais nas trevas das Cavernas. Mas vá, Coxístenes, só você pode arrumar aquilo que estragou. Adeus amigo, e que os deuses tenham piedade de ti.

Coxístenes: Irei Sócrates, mas por onde devo começar? 
Sócrates: Comece interrogando os 'partidários' de tal juiz se ele, como proprietário de casa própria, recebe do Estado o auxílio moradia. 
Coxístenes: Mas isso seria uma imoralidade, Sócrates. Que moral pode ter um juiz que burla o sistema assim, de forma tão...tão corrupta?
Sócrates: Coloque de novo a panela no fogão, Coxístenes. É pra isso que ela foi feita.      

quarta-feira, 1 de março de 2017

O 'Chullachaqui'


É um espírito vazio de si mesmo que se tornou uma imagem fantasmagórica que vaga pelas florestas equatoriais sul-americanas, perdido num tempo sem tempo, num espaço imemorial do futuro/passado pré-cosmogônico, onde tudo ainda não começou ou já foi destruído. E deveras reina o caos. É assim que os índios no alto rio Amazonas interpretam a fotografia.
Mais isso é muito mais do que uma simples análise dos efeitos do daguerreótipo na racionalidade mitológica indígena sobre as estranhas mágicas praticadas pelos homens brancos e seus souvenires tecnológicos. - Na Amazônia peruana, Chullachaqui é um espírito que aparece para os solitários que se perdem na floresta, ele tem um pé diferente, um pé de cabra, e ilude sua vítima a ponto de fazê-la desaparecer em espaços vazios do mundo.
Nossa sociedade modernizada também produz os seus "chullachaquis" através das infinitas fotografias produzidas pelas câmeras dos celulares, daguerreótipos digitais, postados a exaustão nas redes sociais. Imagens vazias, legendadas por frases que vão desaparecendo lentamente até que mergulharão na ausência total de significado. Fantasmas e mais fantasmas multiplicando-se num mundo com uma profunda ausência de palavras. - Seria esse o sonho de Wittengeistein: um lugar onde as várias camadas de subjetividades que envolvem as palavras são dissolvidas por Chullachaquis, só restando, por fim, imagens, denotações multicores de fantasmas expostos e apresentados por sinais polidos a exaustão a ponto de tornaram-se placas/esculturas/palavras?
Em tempos de evolução da tecnologia e da bio-química, a longevidade tem se tornado uma característica marcante dessa sociedade digital, onde o corpo vem vencendo o tempo. Porém o cérebro parece não conseguir acompanhar esse 'puxadinho' de vida 'biológica'. É a dança de milhões e milhões de pessoas com Alzheimer e outras doenças mentais que nos transformam em Chullachaquis modernos. No auge da doença, sobra apenas uma imagem de alguém que já existiu e que perde, lentamente, o passado e se despede do futuro. Em pouco tempo já não sabe mais quem é e nem o que deve fazer. Só restam a imagem, o silêncio e o caos mental. As palavras se tornam grunhidos. Não há esperanças ou uma subjetividade mínima que possam consolar o que se falta a 'viver' nesse puxadinho possibilitado pela bio-química.
Alguns mais aficionados pelo mundo da mitologia dirão que os Chullachaquis resgatam as pessoas de seus mundos pasteurizados e acromáticos, salvando-os de uma destruição  causada pela insignificância e os apresenta à chacrona, planta alucinógena usada em chás amazônicos. Ao bebê-la, dissolvida no chá, o solitário se projeta em alucinações no interior da metafísica indígena que dá sentido à vida. Por isso esses mitos 'tricksters', (traiçoeiros), preferem os corações abandonados que até já pensaram em vender a própria alma aos infernos, em troca de alguma dose de hedonismo pulsante nesse mundo 'concreto' que se 'liquefaz' dia após dia. - Se Immanuel Kant criou a Crítica da razão Pura, os xamãs amazônicos criaram a Análise do Padrão Psicodélico Puro, pois a divindade que habita o princípio ativo da chacrona, em tese, criaria alucinações padronizadas. Ao decodificá-las e entendê-las encontraríamos o sentido da vida.
O Coiote, Macunaíma, Loki, Chullachaqui, entre outros, são tricksters, espíritos traiçoeiros que nos ajudam a evoluir espiritualmente enquanto também evoluem porque nascem sem caráter, mas com uma propensão gigantesca às traquinagens e molecagens. Isso se dá, grifo nosso, em função de uma ausência de uma consciência histórica linear. Esses seres não contam o tempo de forma binária e em somatória acumulativa escatológica. - Estar sempre no mesmo espaço natural, a floresta, contando o tempo através das luas, torna o índio amazônico o campo da batalha entre o bem e mal desprovido de parâmetros, paradigmas, axiomas e caracteres racionais históricos; eis o puro feeling em ação.  
Afinal, cada animal é um aspecto da alma humana que vagueia pela Terra e ao defrontar-se consigo mesmo, a todo instante, na busca pela essência das coisas, não pode a alma ser encontrada em algo mediado por uma moral positivada pela razão de um tempo histórico tradiconal. O relativismo latitudinário ilimitado da psicodelia advinda da chacrona torna-se a única chave de abertura para um mundo que não é um mundo, um sentido que não é um sentido, mas que fará dos seres da florestas algo mais puro e benéfico ao próprio universo, pois afinal  dissolver-se-ão no âmago insondável da irracionalidade e quem sabe, da felicidade. Assim é, assim seja.
Mazel Tov.