A terceira ponte
Eu estava na rodoviária de Passa Quatro, MG. Pedi a mulher do guichê que me desse uma passagem para Cruzeiro, SP. Enquanto ela carimbava e calculava o troco, eu olhei as montanhas ao redor da cidade e disse:
— Quando estou em Cruzeiro e olho pra essas montanhas, digo que lá é Minas Gerais; agora que estou aqui, digo que lá é o estado de São Paulo.
A mulher me olhou, cara de poucos amigos, disse:
— Ora, faça me o favor! A essa hora do dia!
Peguei minha passagem e fui esperar num banco à frente da plataforma de embarque. Foi quando vi um homem de calça de algodão esgarçada, amarrada com cipó, cabelos brancos, camisa de cor indefinida e um saco de estopa que transbordava alfazema. Sentou-se ao meu lado e sorriu. Depois apontou um pequeno redemoinho no meio da rua. Voavam poeira e papéis de bala, enquanto me dizia:
— Redemoinho é quando o vôo do olhar do cachorro dá voltas, pra ver se tem rabo também.
Foi a melhor definição de redemoinho que já tinha ouvido. Nunca gostei da idéia de que o Diabo, segundo Guimarães Rosa, vivia dentro dele. Era só jogar uma peneira com uma cruz desenhada na palha e apanhar ‘o coisa ruim’. Bom, acho que misturei Lobato com Rosa. Mas isso não tem importância.
O homem que via o olhar do cachorro dando voltas no redemoinho, me convidou para ir a pé para Cruzeiro. Descer a serra para encontrar Bernardo na terceira ponte, seu amigo desaparecido. Eu fui. Paramos na Santa, mãe negra de Deus de olhar voltado para o Vale.
Um menino de cara triste, mas de sorriso, nos vendeu uma cesta de amoras. Descemos pelo asfalto na cesta, dois meninos num trenó de palha, desgastando a estrada e comendo amoras. Em meio às curvas arrojadas, me lembrei do cometa Halley; ninguém pensa mais nele. Paramos na terceira ponte. O homem velho olhou pro Paraíba e gritou. Sua voz era de amigo que procurava o irmão perdido no tempo:
— BERNARDO!!! BERNARDO!!!
Ele me disse que se em Cruzeiro existia a terceira ponte, então também haveria de ter a ‘terceira margem do rio’. Seu amigo, homem tão substancioso como um rio e tão puro como uma árvore, dessas que tem ninho de coleirinha, remando sem parar numa canoa de Jatobá Tupi, poderia estar por ali. Mas de maneira triste foi o silêncio quem respondeu.
Eu tinha esperanças e fui com ele até a segunda ponte. É onde sempre vejo homens andando sobre a água. São canoas de lata, cheias de areia. Os homens do porto de areia pescam areia, a canoa de lata fica tão pesada que a borda vai quase abaixo do nível da água, barriga submersa. Sobre ela o homem de chapéu de palha. De longe parece que ele anda sobre as águas. Talvez Bernardo se encontrasse ali. Mas o velho me respondeu:
— É belo os homens sobre as águas, mas Bernardo não pesca areia. Conta histórias pros peixes que dormem na areia, olhando a lua.
Ele se foi ao ouvir o rangido de um carro-de-boi que passava naquele instante. O condutor do veículo bovino deu-lhe a mão e ele achou lugar na carroça. Ainda ganhou um chapéu pra amenizar o sol. Foi quando me lembrei que não havia perguntado seu nome. Corri atrás do carro-de-boi, os caminhões da segunda ponte buzinavam, tinham pressa, sempre, mas consegui alcançá-lo.
— Ei! Qual é seu nome?
Ele sorriu e acenou, tinha óculos e um bigode ralo:
— Manuel de Barros.
E se foi, especializando o mundo em nada e em outras estripulias.