Havia o sol por entre as frestas de milhares de
folhas da árvore e eu, sedentariamente, me deleitava com o violão sob a dança
dos fractais na luz que permeava os galhos, mas eis que minha palheta caiu. Estiquei
meu braço para buscá-la ao chão. Senti, naquele glorioso esforço de me abaixar,
que todos os meus ossos estalaram. O couro cabeludo deslizou pelo crânio numa incômoda
sensação. Eu era aquela estrutura óssea que permitia ‘meu-ser-ser-eu’. Sim, assim
mesmo: ‘meu-ser-ser-eu’.
Sem os ossos o movimento seria de projeção plástica, águas vivas na atmosfera. E assim, diante do que afinal não somos, − e só na ficção se
possibilita existir esse tal não-ser −, é que posso tentar entender o que sou, de fato, nessa contingente condição humana. Como habitante dessa ladeira em que avançamos sem piedade, onde a ironia pode confortar, ou uma trilha sonora qualquer de um
filme tem a força para serenar a angústia, sei que inevitavelmente a palheta irá cair de novo e os ossos estalarão numa performance apoteótica aguardada pelo futuro. Mas estarei cheio de esperanças à buscá-la como quem deseja resgatar Helena
de Tróia do sequetro desse Cronos maldito que berra pelo fim de minha carcaça. Os ossos sabem que não têm todo tempo do
mundo e eles estão dentro de nós, no meio de nós.
‘É osso’, por demais, às vezes, entender o papel das almas corpóreas e ossificadas daqueles que nos rodeiam voluntariamente, ou involuntariamente. Ao buscarmos a compreensão do que são as pessoas em nossas vidas, quando associadas ao sentido de que poderão preencher os vazios intra-corpóreos angustiantes da solidão, desencadear-se-á de forma inevitável a tradicional demanda pela produção das fábricas (grupos sociais) de nós e novelos. Uma produção dedicada às vidas protagonizadas por magníficos imbróglios, onde tudo sempre vai piorar, quanto
mais tempo estivermos face a face com essas outras faces que nos prometem a supressão
das lacunas entre o mundo e a razão. É o eterno fetiche por um escape.
Quanto mais gente precisarmos contatar, conhecer,
menos saberemos sobre nós mesmos; eis que ficaremos ainda mais perdidos em nosso labirinto
egocêntrico. E seremos seduzidos a pensar que as estrelas desejam nossa
felicidade. No cemitério só há ossos e/ou pó e as estrelas, no céu, não dizem
nada, nem ao menos um ‘parabéns pra você nessa
data querida’. Somos um pacote de possibilidades de enganos e desastres tragicômicos. É só isso que
armazenamos no contato que fazemos uns com os outros. Seremos sempre superficiais/conflituosos quanto mais precisarmos de pessoas para dar significados às nossas vidas. É que elas são, essencialmente, reações, frutos dos mesmos enigmas físicos/metafísicos que agem sobre todos nós.
Todo ser humano é dotado e de uma eficiente capacidade de desconhecer profundamente o céu e a Terra. Mas data vênia, ninguém pode negar que temos uma contínua percepção da constante mortificação de tudo que nos cerca, pra isso basta o espelho; sobre esse reflexo não há como mentir. Mas tal desconhecimento do todo é supostamente vencido com a idealização de pessoas que estariam
num nível superior, e que têm a solução para a confusão geral que nos abarca do nascimento ao túmulo. Eis a falácia sublime, pois no fundo são só mais uma camada da ilusão e não podem vencê-la com ideias que nascem dentro delas mesmas. Pense: como um vírus pode encontrar a cura dele mesmo e transferir isso aos outros iguais e assim dar sentido ao 'universo' em que vivem?
As tais pessoas eleitas como superiores, os tais vírus iluminados, não viram deus algum, menos ainda sabem dos mistérios do universo; nem fizeram qualquer contato imediato do 3º grau. Apenas se chaparam mais do que nós, ou leram mais do que a maioria e isso é a melhor maneira de forjar mentiras universais. ‘Tudo é’ a constante dança dos nós, embaraçamentos e embrulhos. C’est la vie. Tudo é cerebral. Mas é o coração que nos deixa sedentos por um sentido no enredo que desejamos representar.
As tais pessoas eleitas como superiores, os tais vírus iluminados, não viram deus algum, menos ainda sabem dos mistérios do universo; nem fizeram qualquer contato imediato do 3º grau. Apenas se chaparam mais do que nós, ou leram mais do que a maioria e isso é a melhor maneira de forjar mentiras universais. ‘Tudo é’ a constante dança dos nós, embaraçamentos e embrulhos. C’est la vie. Tudo é cerebral. Mas é o coração que nos deixa sedentos por um sentido no enredo que desejamos representar.
Buda, ao se ver iluminado, berrou ao tempo e aos
ossos uma toada de desapego no formato de uma ereção: “Eu quero me libertar!”. E fez-se assim uma emigração dos seres intracranianos que compunham o ser que ele acreditava ser e ter em mãos. Em analogia, expulsos pelo pacote de medidas de contenção fiscal imposta pela ausência de desejos. Ou melhor: uma Sursis deliberada a partes de si
mesmo que o incomodavam a ponto dele mesmo compreender que, aqueles, não faziam parte dele. Cada desejo tem uma face, é um ser, é um outro algo que respira e nos
condena à prática do arrastão acadêmico da formação curricular para que cheguemos ao topo do mundo irreal em que vivemos.
Mas no Nirvana só cabe um ‘EU’; um ‘EU’ que é ao mesmo
tempo livre e ninguém por excelência. Magnificência multicor branca, tridimensionalidade
vazia nadificadora. Dentro do ‘EU’, abaixo
dessa ‘páia’ que embrulha o fumo, tudo o que foi armazenado pelo tempo deve ser
jogado fora. Buda tornou-se novo e livre a partir do instante que passou a ser
um ninguém sem passado. Pobre deus Brahma com suas milhões de faces, suas memórias
serão infinitos relatórios.
Tenho uma pequena confissão: é certo que nunca me
ajoelhei pra nenhum deus. Não posso vir a fazer algo que o transforme num catalisador da abjeta lamúria humana. Que deus nunca nos perdoe! Somos
humanos e precisamos matar essa legião de nós emaranhados no peito, essa chuva
de vaidade no sertão das ervas medicinais.
E a propósito, não há remédio para a vaidade. Até
deus é vaidoso. Quando terminou de criar o mundo, viu que tudo era bonito e então apaixonou por si mesmo e ficou deveras excitado. Se masturbou e ejaculou
galáxias, imortalidades e mitologias. Nunca mais parou de gozar, de se gozar e
de nos gozar. Enquanto isso vamos rezando, sofrendo, querendo dizer a ele que
somos dignos de piedade. Mas ele só tem ouvidos para o sorrir e o dançar no
picadeiro do circo em que usa seu nariz vermelho. Belíssima ficção a que ele criou. Afinal, é através de nossas obras de artes, delírios e imbecilidades que ele conhecerá a si mesmo de maneira integral e inequívoca.
Indico aos bons e valentes leitores desse blog
que assistam o filme, Nebraska.