sábado, 6 de setembro de 2014

Contos absurdos: O Vilarejo




Edgar, ainda com o gosto do pão da manhã na boca, atinou para aquele fato quase que metafísico, é que em seu vilarejo, Havel, entre a montanha e o mar, nunca ninguém havia sido assassinado. Um lugar esquecido pelo Diabo. Mal limpou a boca e saiu aflito em direção à rua, sua xícara permaneceu exalando a fumaça provinda do calor do leite.
Na barbearia relatou a Ferdinand sua descoberta. Com a navalha na mão, o barbeiro viu a luz elétrica refletida no fio da lâmina e pensou em silêncio, como se ainda processasse aquela informação trazida ainda sob os primeiros hálitos da manhã, “...me faltou só um pouco de coragem!”. Mas em seguida manteve a postura de assombro com a novidade: Então, Edgar, quer dizer que não há entre nós um assassino? Exato, e isso está me causando um certo estranhamento, nós nunca nos matamos! Sinceramente não sei o que pensar e ainda mais pela manhã! Bem, nesse caso, deixe-me ir, vou procurar padre Orson. Que seja, até porque lá vem o meu primeiro freguês.
Na igreja, padre Orson ouviu cabisbaixo. Talvez rememorizasse confissões, procurasse limites, ou quem sabe também fora mordido pela mesma intrigante constatação de Edgar, a de que Havel era uma terra sem assassinos. Acabaram caminhando até ao cemitério atrás da igreja. Diante das lápides, viram os nomes comuns de pessoas comuns, que morreram corroídas pelo tempo e muito pouco se lembrava delas: Mas padre, não é estranho que estejam mortos sem deixar lembranças significativas?! Você quer dizer que eles simplesmente passaram pela vida?! Sim! Mas isso não seria bom? Creio que sim! Então por que isso o está incomodando? Não sei. Posso dizer que agora passou a me incomodar também.
Intrigado e sem respostas, Edgar se despediu do padre e seguiu até o jornal do vilarejo. Oscar, o editor, lhe deu o catálogo com todas as primeiras páginas do jornal organizadas em ordem cronológica. Não havia uma manchete que burlasse a rotina dos fatos. O mais grave fora um acidente com um barco num inverno há alguns anos. Oscar coçou a cabeça, mergulhou na mesma frequência sombria em que Edgar se encontrava e disse: Nunca tinha pensado nisso, nenhum de nós é um assassino, ou tem na família alguém do tipo. Não acha isso estranho, Oscar? Creio que sim, mas acho que muitos diriam que isso é sinônimo de felicidade. Então por que saber disso me joga numa agonia asfixiante? Não sei dizer.
Sete dias depois, à noite, no encontro semanal do conselho de Havel, todos se olhavam assustados, entre eles, afinal, não havia um assassino, ou mesmo um ancestral criminoso. A dúvida de Edgar correra o mundo. Por mais que quisessem discutir assuntos de relevância administrativa, não conseguiam esquecer os assassinatos que nunca ocorreram. Por que eram tão diferentes?
À porta do salão do conselho, ao fim da sessão, Edgar conversou com médico da cidade, o Dr. Isaac: Não sei se isso é um sintoma, talvez seja só obra do acaso, somada a uma baixa probabilidade de ocorrências de conflitos! Ou melhor, doutor, que dezenas, centenas de assassinatos ocorreram simbolicamente, psicologicamente, num ambiente privado e sigiloso da mente! Provavelmente isso tenha acontecido. Então o senhor e o padre Orson sabem quem são os nossos assassinos virtuais? Isso eu não posso afirmar, não sou um psicólogo e mesmo que fosse não poderia dizê-lo.
Edgar voltou pra sua casa, naquela noite, com um profundo sentimento de frustração. Setes dias haviam se passado, tempo suficiente para se criar o universo e descansar a posteriori, mas ele ainda não tinha a resposta para a ausência histórica de assassinatos. Em sua varanda, na cadeira de balaço, ficou olhando o mar; sua casa era afastada. Adormeceu e não ouviu os passos no piso de madeira. Despertou de um sonho onde era uma criança com o metal gelado da faca entrando em sua garganta. Uma mão pesada tapou-lhe a boca e seu grito ficou contido enquanto morria com o sangue escorrendo intensamente. 
O carteiro o encontrou pela manhã e chamou o delegado; logo uma multidão se postou diante de sua casa. No seu velório não disseram nada. O padre mal fez a benção. Em sua lápide foi escrito somente seu nome, a data de nascimento e a da morte. E o jornal local não publicou nada, nem mesmo no obituário..