É
normal a gente torcer para os protagonistas no cinema. Há uma cumplicidade, uma
transferência, uma simbiose entre espectador e o herói estampado na tela. É
fácil de nos vermos no lugar do ator e até numa performance mais entusiasmada e
mais viril do que a dele. Essa é a mágica do cinema, a capacidade de nos levar
pra fora de nosso tempo e espaço para um lugar imaginário onde as emoções são
mais intensas e por que não dizer, mais reais. Como?
Zizek
afirma que a vida não é assim tão binária, por isso temos que nos ater aos
aspectos da realidade que encontramos na ficção, ou seja, quanto é verdade e
quanto é mentira na ficção e na realidade que consumimos? É no ponto de
equilíbrio entre esses extremos que podemos entender no quê nos transformamos.
− Podemos usar essa concepção de Zizek para analisarmos o funk carioca, ou mesmo
as canções sertanejas com suas letras de gosto duvidoso: o que é verdade e o
que é mentira no teor dessas expressões populares?
No
polêmico filme, Coringa, estrelado por Joaquim Phoenix, nos deparamos com os conceitos
de Êmile Durkheim, sociólogo francês do início do século XX, que defendia que o
indivíduo era fruto da estrutura social. Mais precisamente, a família, a
educação, o trabalho, o Estado, a cultura e a religião formam e constroem esses
indivíduos que encontramos ao longo da História.
Resumindo,
não há indivíduos que não foram formados por essas estruturas. Até mesmo os que
não têm família e estudo são definidos pela sociedade pela seguinte análise:
"aquele não teve família, não teve educação, nem teve uma criação
religiosa". Até mesmo o suicídio, para Durkheim, era responsabilidade da
sociedade.
Voltando
ao filme de Joaquim Phoenix, o incômodo da narrativa se dá pelo fato de
torcermos por ele apesar de todos os assassinatos que comete: ele mata três
jovens executivos sádicos que o agridem no trem, sua mãe que mentiu pra ele a
vida toda, seu colega de trabalho e o apresentador de um programa de talk show
que o expôs ao constrangimento.
Aliás,
como teve seu tratamento psicológico cancelado por cortes de verbas da
prefeitura nos programas sociais e mais a suspensão de seus remédios, o filme
lança essa sutil dúvida no ar: com a suspensão dos medicamentos, Arthur Fleck,
o Coringa, que trabalhava como palhaço, passou enxergar melhor as coisas e a
escolher com mais perspicácia o joio e o trigo à sua volta? Em outras palavras:
quem merecia viver ou morrer em sua vida?!
Antes
de matar o apresentador do programa de talk show, personagem vivido por Robert De
Niro, o Coringa ainda tenta se justificar, ser ouvido, se esforça em dizer o
quanto é degradante ser constrangido e humilhado por uma sociedade que expõe os defeitos dos indivíduos considerados improdutivos e descartáveis. (Os que nasceram com defeito de fábrica).
Em
outros termos, a narrativa deixa claro que, a salvaguarda do sistema
capitalista se camufla na manutenção desse discurso que a sociedade impinge aos
que são considerados perdedores: 'não há nada de errado com o sistema, você é
quem não se esforça o suficiente, e, por favor, não me venha com esse discurso
de vitimização'. O Coringa, então, diante dessa resposta, atira no apresentador
e o faz como se atirasse em toda mídia.
Peço
licença para um pequeno grifo sobre o que se convêm chamar de discurso de
vitimização. Me parece ser o último fôlego da alteridade que, por ironia desse
estranho mundo em que vivemos, se manifesta, quase que exclusivamente, em quem
está em seu pior momento na vida: aquele de ter de pedir ajuda a um estranho
para continuar a sobreviver. E é nessa hora que o tipo humano chamado de homem
comum, ou cristão ocidental, diante de um pedido de piedade destila seu sadismo
e seu prazer secreto de ver o próximo se lascar ainda mais com sua negativa.
Parece haver um anseio pelo espetáculo do desespero encenado pelo pobre
perdedor que o procura em nome da misericórdia e da caridade.
Mas
enfim, a cena do assassinato do personagem de Roberto De Niro, transmitida ao
vivo, desencadeia o caos em Gothan City. Surge uma rebeldia generalizada que
vai muito além da capacidade das forças de seguranças públicas para conter a
convulsão. São milhares de Coringas que despertam movidos pela sanha de
destruir o mundo que os fez malditos, desprezíveis e improdutivos.
'Durkheim' parece ter razão: é a sociedade quem cria os indivíduos. E quando ela nega, por
meio do Estado, o acesso aos recursos financeiros que viabilizam programas sociais, em
nome de uma ideologia econômica que preza pelo desmonte desse mesmo Estado, os Coringas emergem. E ao
que parece ela se torna vítima de sua própria negação, ao não estender a mão a quem
está imerso no desespero.
Sim,
Batman é tão criminoso quanto o Coringa. Mas isso é pra um outro texto.