De repente aparecemos no mundo, assim, sem saber de
onde viemos. E quando nosso conjunto ‘percepcional’ se interliga
definitivamente, começamos a criar uma memória sobre o tempo corrente em que
estamos; somos capazes de imaginar, sonhar, ou simplesmente achar que já sabíamos
de certas coisas. É a sedução pela Idea de que somos de outro tempo, de outros
mundos e que estamos ali, naquele espaço específico, por um motivo que ainda não
sabemos, mas num dia qualquer revelar-se-á nossa missão. Ás vezes esse dia
nunca chega e só ficamos velhos e decadentes.
Existem crianças que brincam o tempo todo, são ativas
e só se sossegam à frente da TV. Eu, por vezes, ficava deitado com as pernas
em movimentos, os braços girando como quem dirigia um
carro imaginário e o crânio repousado no chão frio da varanda; eu ia longe com o
pensamento, como se desprendesse o cérebro do corpo e a mente do sistema
nervoso. Depois o corpo repousava e aceitava a frequência proposta pela mente. O
corpo em repouso e a mente em movimento por sobre a parca história que eu
conhecia.
Eu gostava de fechar os olhos e apertá-los com o
indicador e o polegar de maneira simultânea. Então surgia uma série de raios
coloridos, todos dançando de uma forma espiral, como se viessem do horizonte
negro postado à minha frente. Era a forma como eu recebia energia do planeta do
qual eu pertencia, era assim que me comunicava com meus ancestrais que nunca
conheci. Por que eles haviam me mandado pra este planeta Terra? Tal resposta eu
nunca encontrei. Ainda aperto os olhos, vez ou outra, e lá estão os raios intergalácticos.
Mas eu creio que essa minha possibilidade de viajar
dentro da própria mente se deu graças aos desenhos animados com os quais eu me
deliciava. A TV, criticada sempre, e eu sei que deve ser assim, prende a
atenção da inocência se for recheada de desenhos, − gostamos de desenhar em
folhas de papel, em paredes, por que na TV seria diferente?
Desenhos animados são frutos de uma magia pura, feita
por mãos dedicadas ao movimento e à profundidade; há propostas narrativas em
tempos truncados e orquestrações sonoras subliminares belíssimas. Basta assistir
ao Papa-léguas e sua lógica surreal. O deserto, as maquinações dos personagens,
a busca dantesca do coiote pelo sabor da carne daquela ave velocíssima. A possibilidade
de se superar a física, a lógica, a gravidade, tudo organizado num mundo
quântico do deserto do Mojave. E detalhe: há ainda o universo paralelo que faz
entregas ao destemido caçador. Que moeda regula a relação entre aqueles dois
mundos? Por que o coiote simplesmente não compra comida?
O mesmo choque de universos ocorria quando me
chamavam para tomar banho pra ir à escola. Por que era preciso ser assim, tão
sem sentido? Sair de uma dimensão para ir a uma outra tão maquinal e tão cheia
de ofícios e caras azedas? Só deveríamos ter filhos se pudéssemos rir a toda
hora, além de possuirmos uma existência sem angústia alguma. Vir para uma vida
onde nada nos pertence e receber ‘estímulos’ a favor da elaboração de um
processo de ‘autoformação’ que possibilite conquistas de bens matérias, ao
mesmo tempo em que compreendemos que o mundo é perecível e transitório é, no
mínimo, patológico. Sim, havia mais lógica no desenho do coiote e do papa-léguas.
O que sempre gostei dessa vida foi do tempo livre que alcancei para
ficar comigo mesmo. Senão, como poderia escrever este conto inútil? Dedicar tempo
e mais tempo para a formação de um ‘eu’ que agrade aos homens de negócios, aos
gerentes dos templos, à classe política e aos familiares que nos rodeiam, que
sempre nos querem próximos desde que não os incomodemos financeiramente,
mas em contrapartida sempre desejam que façamos exatamente aquilo que eles pensam ser o certo
‘a se fazer vida’, me parece ser a construção masoquista de um Judas Iscariotes
que atuará contra si mesmo nesse mundo, que afinal, não é posse de ninguém.