O Mago é a
carta número 1 do Tarô, que tem como característica a manipulação das ilusões diante
de uma platéia que pensa estar olhando pra realidade. Um Bloco de Carnaval é
isso: um aglomerado de Magos, todos ansiosos e inebriados pelos próprios sonhos
a ponto de acreditar que as ilusões, ‘as que deveras sonham’, são verdades àqueles
pra quem o bloco se apresenta.
Certa vez
imaginei um Bloco de Carnaval que tinha o inusitado nome de Filhos de Onã, uma
conotação debochada sobre a auto-suficiência sexual dos adolescentes em
ebulição, os ávidos e eternos leitores da revista Playboy. Mas um amigo, Alício
de Areias, jogou água no projeto. Disse que era um paradoxo, — disse isso
enquanto gargalhava —, pois Onã, na Bíblia, fora condenado por desperdiçar o
esperma sobre a terra e, em seu caso específico, ‘por não permitir a
transmissão a nenhuma criatura o legado de nossa miséria; e com isso não teve
filhos’.
Ainda tentei
salvar a ideia, o conceito do Bloco que vislumbrava. Vi atrás de um estandarte
estampado, Filhos de Onã, uma horda de Brás Cubas esmerilhando o chão com
passos de bailarinos bêbados, magníficos foliões. Atinei depois, enquanto
Alício ainda sorria, que o enredo era complexo por demais, muito pior do que os
das escolas de samba do Rio de Janeiro. Necessitaria de um carro de som para
explicar ao venerável público a proposta do Bloco, o que tornaria o treco todo
inviável.
Pra quem não
sabe, Alício tem muito em comum com o roqueiro Ozzy Osbourne, que em pleno show
do Black Sabbath agarrou um morcego e o arrancou-lhe a cabeça com os dentes. Dizem
que era de plástico, mas na dúvida, o roqueiro tomou todas as antitetânicas
indicadas para tão exótico paladar.
Se engana quem
pensa que Alício comeu algum morcego. Não, ele inalou a poeira de uma Caverna
temperada com restos orgânicos fisiológicos de morcegos, numa excursão
pedagógica que visava a análise in loco de estalactites e estalagmites.
Resultado: pulmões cheios de bactérias; foi salvo pela alopatia e pelo consumo
de carne. Over dose de proteína para melhor absorção dos remédios. Para um homeopata e vegetariano de carteirinha foi a profanação mor de seu templo, mas que
lhe salvou a vida.
Passados o
susto e o tempo, fui eu quem bateu na quina do túmulo e retornou pra vida, onde
numa noite, há mais de dois anos, minha pressão arterial conseguiu a
fantástica cifra de 22/21, e eu não estava sentido nada de anormal. ‘Foi
infarto?! Foi! Não foi! Foi! Não foi!’. O fato é que sobrevivi. Tudo culpa da
boca, que não se cansa de carne, cerveja e derivados. E foi aí que surgiu meu
segundo Bloco de Carnaval.
Dentre os
vários remédios que tive que passar a tomar, tinha um que se chamava Alopurinol
e de tanto pronunciar seu nome me veio à cabeça uma derivação onomatopéica
para o remédio, e que por acaso, ficava bem como nome de Bloco de Carnaval: Alô, urinol! Só o nome já me bastou para a criação de um enredo: foliões
com penicos 1,99 sobre a cabeça, como o Elmo sagrado de Dom Quixote, barbicha
no queixo, e bacias no peito como escudos. As lanças seriam aquelas vassouras
de limpar latrinas.
O samba teria no refrão o apelo ao amor de Dulcinéia del Toboso; no restante da letra, a narrativa das lutas
dos foliões contra os moinhos de vento, que na verdade são monstros que
teimamos em ver como moinhos inofensivos. Carlos Heitor Cony, um dos mestres de
nossa literatura, sabe muito bem disso. Ele tem um fiapo da pele de um moinho
guardado num diário secreto, onde registrou certa viagem que fez para Espanha, em plena Mancha, terra
de Quixote. Comprovou que os tais moinhos são, realmente, monstros disfarçados
de moinhos. É que estamos todos cegos, como no Ensaio sobre a Cegueira, de José
Saramago: “...e se fossemos todos cegos?”.
Às vezes, em meio 'aos delírios do cotidiano', me vem à cabeça imagens, cenários de sonhos, que não sei mais de que fontes são originários. Algum filme, algum carnaval, uma reportagem, sei lá! Me esforço na busca do fio do tempo que costura os quadros da memória, uma vã tentativa de veneração e obediência ao deus Cronos, à busca da origem onírica dessas 'minhas imagens', mais o significado, além dos motivos pelos quais foram forjados.
Eis-me a negar Heráclito, pois entro várias vezes no mesmo rio das lembranças, na topografia da memória, e solto as velas do barco e o deixo navegar por mares de sonhos 'meus', que já nem sei mais por quem foram criados, ou dos motivos de suas edificações. Seus lastros conotativos desapareceram, mas os cenários ainda estão vivos, despreocupados com a realidade. Abrigos para que se possa fugir da 'loucura'.