segunda-feira, 29 de julho de 2013

Não, à adoração ao dinheiro!

O papa Francisco I saiu com esta, dias desses, antes de vir ao Brasil: a adoração ao dinheiro deve cessar e o mais rápido possível. Logo a Igreja, que defendeu o capitalismo ao longo da História, com todo o mal que ele causou, — e causa —, aos homens de boa vontade, pelo simples contato com o pensamento especulativo, a ponto de tornarem-se porcos e/ou cães de guerra, vem com uma declaração dessas. Se for verdade, que bom! Seria a glória maior de El-Shadai.  
Confesso que fiquei feliz por tal declaração. Pensei nas ordens religiosas que vivem da educação. Após tal declaração do chefe, imediatamente, pensei comigo, podiam iniciar uma campanha prática contra a adoração ao dinheiro. 1º passo: abaixar as mensalidades das escolas, faculdades, cursos de pós, mestrados, doutorados. 2º passo: aumentar o salário dos pobres professores; depois liberação de bolsas de estudo a favelados, pequenos ladrões e crianças órfãs.
As ordens e congregações que não lidam com educação, ao invés de pedir dinheiro pela televisão, iriam oferecê-lo aos endividados. Depois doariam as terras adquiridas para pequenos produtores. Já as jóias que ganham dos fiéis, seriam doadas para o tratamento dos infelizes drogados, para que possam ver a luz da vida. Tenho certeza que assim, o mundo se tornaria mais ‘carismático’ e fraterno.
Aqueles que vivem e freqüentam tais congregações, em mutirões em nome de Cristo, deveriam limpar escolas e hospitais públicos, lavar os pés dos habitantes da cracolândia, abraçar os desgraçados que fedem e não somente deveriam dar-lhes o que comer, mas também ouvir suas histórias, apesar de serem histórias que não lhes dizem respeito. — E a bem da verdade, são histórias chatas e cotidianamente ordinárias. Fingir que elas nos tocam é hipocrisia.
Sinto muito, mas os cristãos ainda estão por vir ao mundo. O que existe é um rebanho alienado, com a idéia fixa de afastar o inferno após a morte através de orações (mantras) repetidas a exaustão. Um misto de lavagem cerebral com pitadas de hipocrisia: sim, eu estou a julgar! Quem não faz isso: julgar?!      
Mas essa fusão de ideologias tão incompatíveis, capitalismo e cristianismo, dentro de um pobre cérebro, transforma o aspirante a cristão num pseudo-cristão. A corda arrebenta, sempre, do lado mais fraco. Na hora de mudar o mundo, os donos do poder, com a mitra na cabeça, batina e anéis sagrados nos dedos, repetem o credo da submissão: “...é preciso bom senso!”. Se Cristo tivesse tido bom senso contra os poderosos, não haveria cristianismo.
Os cristãos lutam contra o próprio cristianismo e enriquecem os sepulcros caiados, as igrejas e ordens, que arrecadam fortunas e são usadas sabe-se lá onde, para proveito sabe-se lá de quem. Congregações e Ordens vivem do medo, da agonia que provém do mundo capitalista. Os indivíduos comuns sofrem porque têm medo de perder o emprego, têm medo dos filhos ficarem sem estudo, sem trabalho, sem alimento e sem chances de constituírem famílias. A carência material transforma os indivíduos em escravos espirituais.
Atormentados e paranóicos, esses falsos cristãos encontram analgésicos e ansiolíticos nos discursos religiosos com a finalidade de manutenção da ordem capitalista, que é quem de fato gera o sofrimento. Mas tal sofrimento é atribuído à vontade de Deus pelos seguidores do cristianismo mercantil. Ganha-se dinheiro com a agonia de terceiros. Dessa forma, o capitalismo é mais sagrado para as Instituições religiosas do que o próprio Cristo. Sem sofrimento não há arrependimento, não há culpa, não há genuflexão. E quem causa o sofrimento é o capitalismo. Diabólico, não?!
Por isso a Igreja sempre lutou contra tudo que pudesse soar próximo às políticas sociais. Ao se eliminar a fome, o desemprego, o medo de se perder o emprego, a culpa por ter falhado economicamente, as ovelhas se tornam aves livres e voam pra longe, sem cabresto e sem líderes.
Na Idade Média o inferno atormentava a alma humana. Com medo, a humanidade rastejava diante da Igreja e doava-lhe os bens, que se transformavam em tickets pro céu. Hoje, o inferno foi substituído pelo capitalismo, e a humanidade, com medo, continua rastejando e doando o suor de seu rosto àqueles que atribuem a Deus o motivo do sofrimento perene que nos cerca, mas que é provindo do capitalismo.
          Será que não há ninguém no cristianismo com um mínimo de ética para propor um rompimento definitivo entre o cristianismo e o capitalismo? Acho que não, é preciso ter bom senso e deixar as coisas como estão. Onde está a Teologia da Libertação?  



Texto dedicado a Leonardo Boff

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Mais médicos

" O médico verdadeiro não tem o direito de acabar a refeição, de escolher a hora, de inquirir se é longe ou perto. O que não atende por estar com visitas, por ter trabalhado muito e achar-se fatigado, ou por ser alta noite, mau o caminho ou tempo, ficar longe, ou no morro; o que sobretudo pede um carro a quem não tem como pagar a receita, ou diz a quem chora à porta que procure outro – esse não é médico, é negociante de negociante de medicina, que trabalha para recolher capital e juros os gastos da formatura. Esse é um desgraçado, que manda, para outro, o anjo da caridade que lhe veio fazer uma visita e lhe trazia a única espórtula que podia saciar a sede de riqueza do seu espírito, a única que jamais se perderá nos vaivens da vida". Bezerra de Menezes



charge: Marcus Muller

terça-feira, 16 de julho de 2013

A máquina do tempo

O primeiro LP do LED ZEPPELIN,1969, chegou às minhas mãos em 1980. Eu tinha 14 anos. Era uma tarde luminosa. Vinis eram objetos distantes, como diamantes no fundo de uma caverna. Em silêncio me dirigi para o toca discos. Levantei a tampa e encaixei o buraco daquela bolacha negra no pequeno obelisco do meio do prato rodopiante, ele girava à velocidade de 33 rotações por minuto. Conduzi o braço mecânico que fazia a leitura dos sulcos com a ponta do dedo indicador da mão direita. A agulha desceu suavemente no espaço inicial que antecede a primeira faixa de todo vinil. Um giro em silêncio. Não consegui me afastar e sentei no chão mesmo, bem à frente do aparelho. Então veio o primeiro acorde: guitarra, baixo e bateria em sincronia. Um som seco, único. Em seguida as baquetas tamborilando nos pratos. De novo tudo junto. Seco, pesado e flutuante. Então veio a voz e a música se expandiu. Olhei por alto, como se não houvesse paredes em meu quarto. Era ritmo, peso e melodia. O som da guitarra trazia uma idéia clara de que havia vida naqueles sulcos. Àquela altura eu sentia o cheiro da tarde, e a luz invadiu meu quarto, um inexplicável estado de espírito que poderia ser chamado de liberdade.
Eu nunca fui de idealizar histórias quando a música rola. Nada de clips na cabeça. Me vejo tocando com a banda, sou o quinto integrante de uma série de bandas mundo afora. Sempre me orgulhei disso. Mas aquele som luminoso, cheio de virilidade, já era velho. A luz que invadia meu quarto vinha da habilidade de 4 jovens músicos.
Nos raios daquela luz eu via a banda como num filme em 3D, minha imaginação era forte o suficiente para criar esse efeito especial. Naquele dia ouvi a primeira faixa várias vezes. Depois a segunda. Um dia uma amiga foi ouvir o disco comigo, essa era a outra coisa legal do vinil, garotas iam até a casa da gente para ouvir as novidades. Então ela perguntou, “Você não ouve as outras faixas?”. Claro, havia ainda uma longa jornada musical no LP a ser descoberta. Hoje tenho a clara convicção que os LPs são máquinas do tempo.
Quando ouvi o LED ZEP pela primeira vez, em 1980, como já disse, o baterista estava próximo da data de sua morte, ela ocorreria em setembro de 1980 e eu havia embarcado na Nau Zeppeliniana em abril do mesmo ano. Tinha uma longa jornada por toda a discografia da banda, mas no tempo real, ela já estava no último suspiro. Em breve o altar estaria com a bateria vazia, e eu em plena preparação para voar na mais significante trilha sonora que meus ouvidos já saborearam; em se tratando do bom e velho rock. Ainda não terminei minha jornada na discografia do Zep, porque não sei quantas vezes se é necessário ouvir cada disco, cada nuance.
Em 2007 eles se apresentaram com o filho do baterista ocupando o lugar vazio no altar. E eles começaram com essa primeira música do primeiro disco: Good times, Bad times. Então as minhas lembranças se juntaram ao presente e uma vertigem tomou conta do espaço. O tempo, a vida e a música estão sempre num carrossel, por isso podemos largar as rédeas e deixar o cavalo nos levar por essas terras ermas, por essas harmonias de chumbo-flutuantes. Nós não corremos perigo.

13 julho....inicio do ano novo dos tripulantes da nave de chumbo 

sexta-feira, 12 de julho de 2013

Olímpico, o cavalo de cana

 - escrito em 2002

— ...nem a priori, nem a posteriori!
Era João Galhardo, que diante da mesa cheia de garrafas de cerveja, definia o caso que há muito atormentava a cidade. O sacristão não concordava, menos ainda o ilustre vereador do partido verde, e tão pouco o advogado da cidade, que em meio a citações jurídicas inócuas, era o maior adversário de Galhardo.
— Olímpico não bebe! E isso é fato!
— Se não bebesse, não comeria os pés de boldo da cidade.
Olímpico era um cavalo que vivia solto. Por várias vezes fora expulso de jardins de senhoras, que com vassoura nas mãos e gritos desesperados na garganta, expulsavam-no do éden com a boca cheia de boldo. Qualquer jardim que viesse a ter um pé daquela árvore, tinha seu muro superado pelo salto desse estranho eqüino. Dizem que foi por essa peculiaridade que recebeu a alcunha de Olímpico. Seu salto sobre grades e muretas era algo cinematográfico.
Galhardo dizia que, segundo Emanuel Kant, não havia razão para isso. Para ele, o livro do filósofo que se intitulava, Crítica da Razão Pura, era uma verdadeira fonte de conhecimentos. Não havia nada que não pudesse ser explicado através daquele livro. E como em suas páginas não havia nada entre animais e álcool, era lógico que Olímpico não bebia. O sacristão defendia a citação bíblica de que todo homem tem o direito a ficar de porre uma vez na vida. Se trocássemos o termo Homem pelo genérico, criatura, tudo se resolvia. O advogado rebatia:
—  Meus caros, não é emendando um texto que resolveremos o problema real. A essência continua encoberta: Olímpico bebe ou não?
O vereador do Partido Verde defendia a possibilidade da extinção dos pés de boldo. Tal espécie acompanhava o Homem há muito, em longa jornada etílica. Quem já não havia amanhecido com um paladar refinado, após uma longa noite dionisíaca, onde o sabor de uma gaveta de roupa suja domina o cenário bucal de maneira intensa? Só boldo para colocar o fígado em dia, por conseqüência, a boca.  Pensava em iniciar um processo contra o cavalo, quiçá não chegasse à praia da pena de morte.
— Mas você não é do Partido Verde?
—  Sim, mas...
— ...mas quer matar um cavalo?
Por um momento o nobre edil havia se esquecido que Olímpico não era um homem, mas sim um animal. A confusão foi atribuída ao sacristão que havia transformado o cavalo num ser especial, digno de alma e morada no paraíso, bastando para isso trocar uma palavra no texto sagrado: de Homem para criatura. Mas não era o homem uma criatura? Galhardo coçava o queixo e sentia que sua metafísica estava pronta a explodir. Ou pelo menos o entendimento que tinha sobre ela não estava lhe servindo de nada. Kant passava de forma tangente em relação ao assunto em debate: Olímpico, pés de boldo e a jurisprudência sobre o caso.
Era preciso descobrir o mistério de Olímpico. A humanidade é assim, não sabe conviver com o diferente, com o mistério que cerca o próximo. A particularidade é proibida. Se Olímpico comia boldo, era por que bebia. Ou então tinha um paladar exótico, o que o diferenciava dos eqüinos. Galhardo não conseguia respostas para o caso, a priori Olímpico sabia da cura de seus supostos porres, o boldo. Mas se sabia a priori que a cura do mal etílico vinha pelo boldo, por que continuar com o suposto consumo de álcool?  Diante de tal argumento o advogado reagiu:
— É uma boa argumentação, Galhardo, mas há quem diga que a metafísica se amplia com uma substância externa ao funcionamento cerebral. Ou seja: uma chapadinha faz o ser humano pensar diferente. Logo, nosso eqüino elevado à criatura catalogável em texto sagrado, também bebia em função de alguma metafísica.
— Protesto!! Não se bebe para ampliação de metafísica, mas sim por traição de mulher. Olímpico foi traído por sua esposa. E só.
O sacristão preferiu a ótica sexual à metafísica do advogado. Acabou culpando uma suposta esposa, o que deixou o vereador do PV irritado. Com tal teoria, a vida conjugal dos cavalos deveria ser estudada.
— Vocês da Igreja querem entender o mundo através do sexo. Quem fundou a Igreja, segundo o próprio comportamento de vocês, não foi Constantino, mas sim Freud. Tem vagina em tudo, caralho!
Nessa hora o dono do bar resolveu expulsar os quatro. Afinal já era madrugada de sábado e eles que fossem para outro bar, ou melhor, que fossem para casa. Porém ninguém é expulso de um bar sem uma saideira. E foi durante a última garrafa que aquela confraria chegou a um acordo. Dividiriam o fim de semana em oito partes de seis horas e cada um vigiaria Olímpico de maneira integral. Marcação individual, tal como se fazia com Pelé, Garrincha, Zico e Maradona. Todos os detalhes deveriam ser registrados.
O vereador do PV solicitou ao grupo uma consulta a um veterinário, pois a questão sexual dos cavalos precisava ser esclarecida. Eram ou não monogâmicos? Isso seria vital para teoria do suposto hábito alcoólico de Olímpico.
Chegaram de táxi à clínica de Pepino de Ancira, uma clínica que ficava aberta vinte quatro horas, atendendo cachorrinhos de madames da alta sociedade. Convenceram o motorista que tal corrida não poderia ser paga por ninguém, pois se tratava de um trabalho coletivo, em que toda sociedade estava envolvida. Logo ele não poderia cobrar. Literalmente, saiu queimando pneu.
Pepino de Ancira tinha 45 anos e há quem diga que só havia começado sua vida sexual após a invenção do Viagra. Seria o grande oráculo de nossos pesquisadores, que desejavam esclarecimentos sobre a sexualidade dos cavalos. O grupo chegou e foi entrando. Cumprimentaram o italiano e logo foram perguntado sobre os cavalos. A resposta foi.
— ... a égua é de quem chegar primeiro!
— É igual a um baile e carnaval! Que Deus nos proteja!
— Caro sacristão, na natureza não há pecados. A reprodução é o mais importante, a sobrevivência da espécie é o que importa.
Galhardo observava a discussão do partido verde com a Igreja e em silêncio agonizava, pois na Crítica da Razão Pura de Kant não havia nada sobre a evolução das espécies. O advogado descartava a possibilidade de agonia por problemas vinculados à paternidade. Se a égua era de todos, não havia motivo para a tristeza de Olímpico. Pepino de Ancira resolveu jogar um pouco mais de luz na questão:
— Pode ser apenas um distúrbio gastrintestinal, eis o motivo do boldo!
Era quase uma Eureka. Apesar do vereador do PV, já imediatamente após a nova possibilidade encontrada declarar que, o suposto problema gastrintestinal poderia estar relacionado ao uso de pesticida nos arredores da cidade. Aquele negócio de matar capim pra dizer que a cidade era bem administrada estava causando danos físicos e mentais à fauna local.
Porém, enquanto grupo pesquisava, desconhecia que Olímpico fizera sua última invasão em busca por um pé de boldo na tarde daquele sábado. Não sabiam que estavam investigando um detento. Foi assim: Olímpico havia encontrado a entrada de serviço de uma casa aberta e invadiu. Ao fundo, deparou-se com um maravilhoso exemplar da erva em seu maior esplendor. Deglutiu-a sem maiores reservas.
Já a dona da casa entrou em pânico. E, não bastasse isso, o vento ainda bateu a porta da entrada de serviço e Olímpico se viu preso no quintal. Ciente de que precisava fugir, resolveu buscar a saída pela porta da cozinha e atravessar todo interior da casa. Os gritos, mais os móveis sendo quebrados chamaram a atenção da vizinhança. Logo veio a polícia e o corpo de bombeiros que conseguiu colocar uma corda no pescoço de Olímpico. Levam-no para rua em meio às lágrimas da dona da casa e aplausos da pequena multidão que se formou por ali.
—...senhor Olímpico, considere-se preso.
Os homens da lei eram muito rigorosos. Olímpico fora levado à delegacia.
Há muito o fato corria de boca em boca. O caso do cavalo parecia querer entrar definitivamente ao folclore daquela cidade. O mistério, a inversão da lógica natural, aquilo que difere se torna alvo de especulações e foi isso que Olímpico conquistou: a notoriedade pelo gosto de comer boldo. Só que agora havia invadido uma propriedade, havia destruído patrimônio alheio, estava contra a Constituição, contra os textos sagrados. Mas independentemente disso, seria condenado; quiçá a morte.
Galhardo depois da consulta inócua com o veterinário, e curado do porre do sábado, resolveu escrever uma crônica sobre o assunto e pediu que fosse publicada no periódico da cidade. Seu texto afirmava que antes de qualquer coisa, era preciso saber o porque de Olímpico se alimentar de boldo. Seria uma aberração, uma flutuação nos conceitos darwinistas? Kant não explicava nada sobre isso. Menos ainda: como se julgaria tal criatura em relação às leis? Ele não assumia publicamente, mas já possuía uma segunda decepção com a Crítica da Razão Pura do velho Kant: a impossibilidade do julgamento. O cavalo não poderia ser julgado pelos critérios racionais de Kant.
A primeira coisa que a justiça fez, foi procurar o dono do cavalo. Normalmente filho feio não tem pai. Assim foi impossível encontra-lo. Talvez a culpa tenha sido da imprensa, que noticiara de uma maneira precoce que, o suposto dono de Olímpico arcaria com as despesas daquela invasão insólita. Enquanto o cavalo aguardava a busca de seu dono, o texto de Galhardo saiu e aumentou a confusão.
Todos nós sabemos da capacidade do brasileiro em interpretar textos. Já alcançamos o nível dos países africanos, o que mostra uma preocupação histórica dos governos brasileiros com educação. Por isso, pelo fato de Galhardo repetir várias vezes em sua crônica: “... segundo Kant, não há razão pra isso”, a culpa acabou recaindo sobre o tal de Kant. Nas ruas as pessoas conversavam:
—...cê viu, é o tal do Kant.
—  Eu não toco violão!
—  Quê negócio é esse de cantar?
—  ‘Cê quer que eu Kant!!
—  Não, o nome do dono do cavalo é Kant!
—  Espanhol?Claro que não! Italiano!
Para sorte do Brasil aquele periódico não circulava na Europa. Galhardo chorou ante a repercussão de seu texto racional. Cercado por seus amigos bebeu o espírito de Olímpico, que fora sacrificado horas após a impressão do jornal. O sacristão não quis brindar, pois afinal animais não tinham alma, o que os tornava pagãos.
Ao fim da décima quinta dose de conhaque, Galhardo resolveu procurar o veterinário. Ainda pairava uma dúvida no ar. A cruzada etílica atravessou as ruas desertas e alcançou aquele pequeno hospital. Após alguns minutos de sacrifício, conseguiram passar pela porta e se depararam com Pepino de Ancira. Galhardo perguntou:
—  Como é possível você se chamar Pepino de Ancira, se Ancira não fica na Itália? 
Então Pepino de Ancira explicou que sua família viera da Turquia para a Itália e há muito. Depois, para o Brasil. 
Antes de terminar a explicação, Galhardo caiu sobre a mesa. O álcool havia vencido. Os amigos entreolharam-se e o vereador disse:
— Pepino, você tem boldo por aí?
— Tenho, mas acho que o caso é mais para glicose. 
Deitado na mesa onde o veterinário atendia os seres irracionais, Galhardo abriu os olhos e reencontrou sua eterna derrota. Parecia não haver razão em nada. Uma razão pura parecia só ter existido na cabeça germânica de Kant. E que mal poderia haver em não existir uma razão pura? Kant que fosse para a puta que o pariu. Pensou que quando saísse dali, beberia um trago em homenagem a Olímpico. Que bobagem era essa de só aceitar o diferente, após uma razão que explicasse a estranheza? Realmente, não havia razão para isso.

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Eu protesto!


Não é que o brasileiro não se ligava em protestos, é que ele não sabia que podia praticá-los livremente. Pensava que toda manifestação resultasse numa chuva de balas de borracha, em meio a uma nuvem de gás lacrimogêneo, bem temperada com o mais eficiente dos cassetetes.
Quantas greves de professores, até mesmo da polícia civil do Est. de SP, ao longo desses anos, não foram temperadas pela equação: a) governos estaduais fechados ao diálogo, mas pronto para distribuir pauladas. b) o povo, em geral, chamando os grevistas de vagabundos. c) a mídia com os microfones fechados aos grevistas, fazendo análises das imagens contra as greves. Resultado: A + B + C = ‘visão política’ do cidadão paulista e do brasileiro em geral.
Do submundo da proibição moral, sinônimo de baderna, os protestos migraram para a ‘praça da normalidade’. Na Grécia antiga, século V a.c., chamavam a isso de Democracia. E só podia ser chamada de Democracia se fosse na praça, conhecida como Ágora. — Os vândalos de hoje ainda não entenderam que, suas atitudes favorecem ao discurso dos reacionários ao movimento de politização. Quebrar a vidraça de um banco, com seus caixas-eletrônicos, não significa nada, o seguro paga. Equivale querer destruir um país inimigo queimando-lhe a foto.
Destruir o sistema bancário, o Estado de direito, a ordem democrática, para que esse caos, finalmente, destrua o capitalismo, corresponde a uma grande ignorância. Precisamos de um espaço institucional para que possamos satisfazer nossos desejos. E devemos entender que a saciação desses desejos, numa sociedade capitalista, corresponde à diminuição de poder e da riqueza da elite econômica.
Exemplos: querer a redução das taxas de pedágio, desejar passe livre para o transporte coletivo, pagar menos impostos e o que mais se pensar, corresponde à redução dos lucros das empresas que administram os setores. O serviço é controlado por contratos (licitações) que, normalmente, ‘não podem ser alterados’ porque a jurisprudência estatal trabalha a favor do lucro da empresa, para ‘viabilidade do serviço prestado’.
Por isso a mídia, sempre diante de uma contestação, convoca juristas que são especialistas em dizer que, o povo e seus anseios, na maioria das vezes, são ‘inconstitucionais’. Não têm a menor vergonha de propagar que, o lucro é constitucional, o manifestante, não!  E deveria ser o exatamente o contrário. Mas é papel da mídia fazer você entender que, “a vida é assim, o que mamãe falou não vale nada!”, como já disseram os The Fevers.  
A polifonia de gritos, ansiosos pela satisfação, deve ser a base da constituição, não o oposto. Para isso serve o Estado, e mais a gama de empresas que ele contrata para retribuir, em serviços, a riqueza gerada pelas classes sociais que desejam e produzem constantemente. A grande maioria produz, sonha e sacia poucos de suas aspirações; uma pequena parte da sociedade pouco produz e sacia quase a totalidade de seus desejos.
Encontramos o calcanhar de Aquiles dos anseios das manifestações: a redução da margem dos lucros das empresas que prestam serviços para o Estado (municipal, estadual e federal). Essa redução é vital para o alcance da qualidade de vida almejada pelo indivíduo inserido nos protestos. É ela quem vai permitir ao usuário do sistema de transporte, por exemplo, viajar sentado, num ônibus de ar condicionado e com locais adequados para embarque e desembarque. Vide outros serviços e pense o mesmo.
Crescemos, como país, com uma corrupção que se fazia sobre os cofres estatais. Com a digitalização das contas públicas e da ampliação da fiscalização, por vários setores do próprio Estado, a corrupção se deslocou para a relação entre o Estado contratante e as empresas vencedoras das licitações. 
        Solução: financiamento público de campanha. Quem é contra, lógico, vai deixar de ganhar algum e a mídia nunca vai mostrar isso pra você. Menos ainda, qual seria a margem de lucro mais justa para se construir um país. Se é que isso é possível.