As
meias separam a pele dos pés da aspereza dos calçados, sejam eles sintéticos ou
de couro. Para enfrentarmos o mundo, e suas engrenagens, usamos as mesmas meias
dos jogadores de basquete da América do norte. São de algodão, têm elástico,
podem ser brancas, coloridas e/ou com faixas. Elas aquecem os pés em dias
outonais e invernais. - Os homens de negócio que usam terno preferem as meias
de poliéster.
Bem,
sempre fui criticado em minha família por usar meias ao avesso. Já as mulheres
que me viram só de meia, nunca prestaram a atenção nisso. Há algo mais para se ver
na nudez exposta na escuridão das alcovas do que a maneira de como se usa as
meias. Mas voltando ao tom familiar, 'vestir' meias ao avesso pode ser um
sintoma de desleixo e indisciplina. Essa foi a sentença que recebi de meus
ancestrais. Do mesmo jeito que não se lia um livro de trás pra frente, ou se
entrava num cinema depois do início de um filme, diziam, também, meus familiares, que não se vestia um par de meias pelo avesso. Talvez, quem sabe, numa canção de
Caetano Veloso, mas não na vida real, não.
Várias
vezes tentei explicar que, para a pele humana, era muito mais confortável que
aquela costura toda, feita por máquinas, ficasse em contato com o calçado e que
a simetria do lado externo das meias suavizava a vida dos pés e tornozelos. Era
uma bela maneira de se evitar coceiras e incômodos, como os causados por
aqueles gomos costurados que ficavam entre os dedos dos pés por horas e horas.
Mas
o conservadorismo tende a se assustar com pequenas liberdades tomadas por
sujeitos insignificantes. Usar um par de meias ao avesso pode subverter as
ordem das coisas do mundo e minimizar alguns valores morais tão caros à
sociedade e a seu funcionamento hierárquico. Exemplo: um soldado raso é só uma 'coisa'
que deve usar as meias do lado certo e não um ser humano que pode optar pelo
conforto da pele dos pés.
Se trocarmos o objeto da análise, as meias, pelo amor, veremos que o efeito pode
ser quase o mesmo. O amor é como um casaco de pele que vestimos com deferência
e orgulho. Talvez seja aquilo que mais nos torne humanos e insuportáveis. Afinal,
é uma peça confeccionada pelo tragicômico e inconseqüente espírito de Eros. E
diga-se de passagem, por dentro é revestido de espinhos e por fora é liso como
a pele de um bebê foca; desses bem branquinhos. Vesti-lo ao avesso o transforma
numa arma de sobrevivência, numa armadura capaz de deitar ao chão os espíritos
que habitam nossas ilusões e sempre vêm nos prometer o paraíso.
Claro,
podemos habitar o avesso de várias vestimentas e trajes. Como no smoking da
conversação, por exemplo, um traje que é revestido de silêncio. E ao vesti-lo
nos seus contrários, nos livramos da mediocridade dos debates acadêmicos, do discurso idiotizado dos admiradores do Dória-MBL-gestão-padrão-fascista e ignorâncias mais. Adquirimos,
assim, a saborosa proteção do silêncio e da invisibilidade; além da
possibilidade da fuga permanente da chatice, da monotonia e da falsa educação
de salão que nos obriga a saudações e convenções proclamadas pelo status quo. -
E também dos imbecis em qualquer situação e/ou idioma.
Talvez
por isso se diga, no senso comum, que ao se vestir uma camisa ao avesso, isso corresponderia
a um medo (in)consciente de fugir de um provável ataque de um 'cachorro louco'. Dessa forma, se o
avesso de tal peça de vestimenta é um amuleto para espantar a loucura de alguns que desejam
tomar satisfações sobre a vida que não lhes diz respeito, há pouca gente de
camisa ao avesso em função do enorme número de lunáticos à solta. Não sei ao certo o tamanho do diâmetro da proteção de tal amuleto, mas o
fato é que, se espanta cachorros e homens loucos, há de ter o mesmo efeito da
canja de galinha: se não faz mal, melhor prevenir do que remediar.
Em suma, melhor ofertar o avesso ao público e proteger o lado
humano, senão é o pobre homem sincero e humilde quem acaba transfigurado em
obsolescência programada e antes mesmo de aprender a dizer, não! Afinal, o inferno são o outros!