quarta-feira, 15 de maio de 2019

Diálogo sobre o juiz que se tornou ministro





Sócrates se encontra com Coxístenes na Ágora (praça) de Atenas. O jovem está vestido com roupa amarela, panela em punho, o jovem 'cidadão' é todo entusiasmo. O bom e velho Sócrates, sempre com sua serenidade, inicia o diálogo:
Sócrates: Agradeço aos deuses por poder ver um jovem transbordando entusiasmos por nossa política! Creio ser isso, não é, Coxístenes, o motivo de tão alvissareira impostação da voz d'alegria em meio a Ágora de nossa cidade?
Coxístenes: Meu bom e velho amigo, meu mestre maior, não sabes como estou feliz em encontrá-lo, e tens razão sobre minha felicidade. Preciso lhe contar que o juiz que condenou nobres figuras de nossa política pelos crimes de corrupção e peculato será o ministro da justiça de nosso novo governo. Não é maravilhoso?
Sócrates: E quem poderá negar fato tão 'transparente'? Regozijar-me-ei junto a ti nesse momento de esplendor e civismo.
Coxístenes: Oh! Sócrates, fico feliz em ver-te em consonância com nosso advento de justiça!
Sócrates: E como poderia ser diferente, já que nenhuma sociedade prolifera sem a imparcialidade de uma justiça universal.
Coxístenes: Que belas palavras, Sócrates!
Sócrates: Sim, sei disso. E por isso não posso deixar de lhe perguntar antes de sair pelo mundo defendendo tal advento, caso alguém me faça alguma pergunta, e eu, dessa forma, venha a ser pego de surpresa a ficar sem resposta. Posso?
Coxístenes: Claro, Sócrates! Pergunte. Tal preocupação é vital para a edificação da honestidade. Que Zeus ilumine nosso caminho!
Sócrates: Bem, esse juiz, que hoje é ministro, condenou o principal adversário político do atual presidente  antes das  eleições e deixou vazar informações que podem ter influenciado no resultado das mesmas?
Coxístenes: Sim, mas como diz a voz do povo, que é a mesma de deus, foi para um bem maior. Não fosse isso a 'justiça' não chegaria ao Palácio do Planalto.
Sócrates: Entendo. Seria aquela fórmula dita e redita ao quatro ventos ao longo de nossa velha história política, que os fins justificam os meios?!
Coxístenes: Sócrates! Os deuses devem se arrepiar com sua capacidade de entendimento. Oh! mestre! Você tem que nos ajudar a espalhar esse entendimento do novo governo pro mundo!  
Sócrates: Fico feliz de receber tal pedido e irei ao templo ainda hoje para mostrar meu agradecimento aos deuses por poder espalhar tão bela notícia. Mas, voltando à minha dúvida anterior, e se alguém me perguntar sobre o fato do  político condenado, o tal adversário do atual governo, também ter dito que os fins justificaram os meios pelos quais governou?
Coxístenes: Como assim, Sócrates?
Sócrates: Para que pudesse ter minimizado a fome, gerado empregos, criado reservas cambiais e obras de infraestrutura, além de boas relações internacionais, comprou votos na assembléia e cobrou propinas das empreiteiras para membros de seu partido e da oposição e inclusive pro antigo partido do atual presidente, que hoje anda de braços dados com todo esse discurso de 'honestidade'.
Cóxistenes: Sócrates, não fosse você um filósofo grego, eu poderia registrar o que você diz e denunciá-lo. As escolas despedem professores que dizem esse tipo de coisa.
Sócrates: Céus, que bom tê-lo ao meu lado, me sinto protegido, mas ainda tenho coisas a lhe perguntar. Caso contrário, quando for espalhar tal advento, não terei respostas pra tais questionamentos.
Coxístenes: Ainda tem mais, Sócrates?
Sócrates: Sim. Podemos afirmar que o tal juiz, hoje ministro da justiça, é um homem extremamente honesto e que jamais se curvaria ante a qualquer ato de corrupção e injustiça?
Coxístenes: Claro. Eis o motivo de sua nomeação para tão nobre cargo, ser alguém acima de qualquer suspeita.
Sócrates: Digamos que, com certa vista grossa, podemos mitigar o conflito de interesses desencadeado com a condenação do adversário do atual presidente, antes das eleições, executada pelo juiz em questão...
Coxístenes: ...conflito do quê?
Sócrates: ...de interesses. No caso, a condenação imposta pelo juiz beneficiou o então candidato que venceu as eleições, que depois o chamou para ministro. Se o juiz tivesse recusado o convite, 'estaria tudo certo'. Mas é fato que o juiz se beneficiou, politicamente, da própria sentença. Se considerarmos que a justiça é representada por uma mulher de os olhos vendados, ocorreu algo de podre no reino da Dinamarca, não é?
Coxístenes: Mas Sócrates, será que os jornais não perceberam isso, pois ao ouvi-lo aqui e agora penso que era preciso urgência em tal questionamento pelos veículo de informação, que por natureza são obrigados a defender a justiça e a democracia de nossa cidade?! E digo mais, pelo contrário, alguns parecem que até festejam tal nomeação, como o jornal O Mundo, o mais lido na cidade.
Sócrates: Creio que os jornais têm cuidado com o herói que ajudaram a falsificar. Mas juntando isso ao silêncio do próprio juiz enquanto ministro, nos deparamos com um profundo mal estar. Não o sentes?
Coxístenes: Sócrates, como assim silêncio, você me confunde, parece uma mosca que caiu na sopa! Isso sim me dá mal estar!
Sócrates: Perdoe-me. Vou  mais devagar. Podemos dizer que o tal juiz, agora ministro, é o exemplo vivo do mais honesto dos homens?
Coxístenes: Mas disso não tenho dúvidas! Quer dizer, agora tenho algumas, mas diria que a maioria das pessoas pensa que o dito juiz é incorruptível.
Sócrates: Então, segundo o que você diz, ele deveria ter se manifestado quando as notícias sobre as possíveis relações entre a família do atual presidente com os criminosos milicianos repercutiu em todo lugar, certo? Mas é fato que manteve-se em silêncio. E mais, posso afirmar que um homem honesto não se cala ante a tamanha barbárie, não é isso?
Coxístenes: Sócrates, se nos ouvirem nos matam. Acho melhor pararmos.  Podemos continuar outro dia?
Sócrates. Claro, meu amigo. Podemos até mudar de assunto, se isso o incomoda.
Coxístenes: Seria maravilhoso. Do que então conversaríamos?
Sócrates: Que tal sobre a pseudo necessidade da reforma da previdência?