Sócrates
se encontra com Coxístenes na Ágora (praça) de Atenas. O jovem está vestido com roupa
amarela, panela em punho, o jovem 'cidadão' é todo entusiasmo. O bom e velho
Sócrates, sempre com sua serenidade, inicia o diálogo:
Sócrates: Agradeço aos deuses por poder
ver um jovem transbordando entusiasmos por nossa política! Creio ser isso, não
é, Coxístenes, o motivo de tão alvissareira impostação da voz d'alegria em meio
a Ágora de nossa cidade?
Coxístenes: Meu bom e velho amigo, meu
mestre maior, não sabes como estou feliz em encontrá-lo, e tens razão sobre
minha felicidade. Preciso lhe contar que o juiz que condenou nobres figuras de
nossa política pelos crimes de corrupção e peculato será o ministro da justiça
de nosso novo governo. Não é maravilhoso?
Sócrates: E quem poderá negar fato tão 'transparente'? Regozijar-me-ei junto a ti nesse momento de esplendor e civismo.
Coxístenes: Oh! Sócrates, fico feliz em ver-te
em consonância com nosso advento de justiça!
Sócrates: E como poderia ser diferente, já
que nenhuma sociedade prolifera sem a imparcialidade de uma justiça universal.
Coxístenes: Que belas palavras, Sócrates!
Sócrates: Sim, sei disso. E por isso não
posso deixar de lhe perguntar antes de sair pelo mundo defendendo tal advento,
caso alguém me faça alguma pergunta, e eu, dessa forma, venha a ser pego de
surpresa a ficar sem resposta. Posso?
Coxístenes: Claro, Sócrates! Pergunte. Tal preocupação
é vital para a edificação da honestidade. Que Zeus ilumine nosso caminho!
Sócrates: Bem, esse juiz, que hoje é
ministro, condenou o principal adversário político do atual presidente antes das eleições e deixou vazar informações que podem
ter influenciado no resultado das mesmas?
Coxístenes: Sim, mas como diz a voz do povo,
que é a mesma de deus, foi para um bem maior. Não fosse isso a 'justiça' não
chegaria ao Palácio do Planalto.
Sócrates: Entendo. Seria aquela fórmula
dita e redita ao quatro ventos ao longo de nossa velha história política, que os
fins justificam os meios?!
Coxístenes: Sócrates! Os deuses devem se
arrepiar com sua capacidade de entendimento. Oh! mestre! Você tem que nos
ajudar a espalhar esse entendimento do novo governo pro mundo!
Sócrates: Fico feliz de receber tal pedido
e irei ao templo ainda hoje para mostrar meu agradecimento aos deuses por poder
espalhar tão bela notícia. Mas, voltando à minha dúvida anterior, e se alguém
me perguntar sobre o fato do político condenado,
o tal adversário do atual governo, também ter dito que os fins justificaram os
meios pelos quais governou?
Coxístenes: Como assim, Sócrates?
Sócrates: Para que pudesse ter minimizado
a fome, gerado empregos, criado reservas cambiais e obras de infraestrutura, além
de boas relações internacionais, comprou votos na assembléia e cobrou propinas
das empreiteiras para membros de seu partido e da oposição e inclusive pro
antigo partido do atual presidente, que hoje anda de braços dados com todo esse
discurso de 'honestidade'.
Cóxistenes: Sócrates, não fosse você um
filósofo grego, eu poderia registrar o que você diz e denunciá-lo. As escolas
despedem professores que dizem esse tipo de coisa.
Sócrates: Céus, que bom tê-lo ao meu lado,
me sinto protegido, mas ainda tenho coisas a lhe perguntar. Caso contrário,
quando for espalhar tal advento, não terei respostas pra tais questionamentos.
Coxístenes: Ainda tem mais, Sócrates?
Sócrates: Sim. Podemos afirmar que o tal
juiz, hoje ministro da justiça, é um homem extremamente honesto e que jamais se
curvaria ante a qualquer ato de corrupção e injustiça?
Coxístenes: Claro. Eis o motivo de sua nomeação
para tão nobre cargo, ser alguém acima de qualquer suspeita.
Sócrates: Digamos que, com certa vista
grossa, podemos mitigar o conflito de interesses desencadeado com a condenação
do adversário do atual presidente, antes das eleições, executada pelo juiz em
questão...
Coxístenes: ...conflito do quê?
Sócrates: ...de interesses. No caso, a
condenação imposta pelo juiz beneficiou o então candidato que venceu as
eleições, que depois o chamou para ministro. Se o juiz tivesse recusado o
convite, 'estaria tudo certo'. Mas é fato que o juiz se beneficiou,
politicamente, da própria sentença. Se considerarmos que a justiça é
representada por uma mulher de os olhos vendados, ocorreu algo de podre no
reino da Dinamarca, não é?
Coxístenes: Mas Sócrates, será que os
jornais não perceberam isso, pois ao ouvi-lo aqui e agora penso que era preciso
urgência em tal questionamento pelos veículo de informação, que por natureza
são obrigados a defender a justiça e a democracia de nossa cidade?! E digo
mais, pelo contrário, alguns parecem que até festejam tal nomeação, como o
jornal O Mundo, o mais lido na cidade.
Sócrates: Creio que os jornais têm cuidado
com o herói que ajudaram a falsificar. Mas juntando isso ao silêncio do próprio
juiz enquanto ministro, nos deparamos com um profundo mal estar. Não o sentes?
Coxístenes: Sócrates, como assim silêncio,
você me confunde, parece uma mosca que caiu na sopa! Isso sim me dá mal estar!
Sócrates: Perdoe-me. Vou mais devagar. Podemos dizer que o tal juiz, agora
ministro, é o exemplo vivo do mais honesto dos homens?
Coxístenes: Mas disso não tenho dúvidas!
Quer dizer, agora tenho algumas, mas diria que a maioria das pessoas pensa que
o dito juiz é incorruptível.
Sócrates: Então, segundo o que você diz,
ele deveria ter se manifestado quando as notícias sobre as possíveis relações
entre a família do atual presidente com os criminosos milicianos repercutiu em
todo lugar, certo? Mas é fato que manteve-se em silêncio. E mais, posso afirmar
que um homem honesto não se cala ante a tamanha barbárie, não é isso?
Coxístenes: Sócrates, se nos ouvirem nos
matam. Acho melhor pararmos. Podemos
continuar outro dia?
Sócrates. Claro, meu amigo. Podemos até
mudar de assunto, se isso o incomoda.
Coxístenes: Seria maravilhoso. Do que então
conversaríamos?
Sócrates: Que tal sobre a pseudo
necessidade da reforma da previdência?