sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

A voz do cachorro na água da torneira



O tempo passa infinitamente. Olho assustado a chama do fósforo e especulo quantos sistemas solares foram criados nesse fragmento de tempo. Quantos seres, paixões, metafísicas e escatologias tiveram seu auge, declínio e inexistência, num breve piscar de um fósforo? O criador, intencionado ou não, agora cospe fumaça como uma lagarta. O que ele me dirá sobre as 6 cascas da existência? Provavelmente que só queria fumar depois do café.
O mundo está prestes a morrer, prestes a nascer, prestes a entender que não poderá jamais permanecer. Como areia jogada no ar e há de formar imagens que mal se fixam e em seguida se esvanecem e o tempo em que estiveram juntas pareceu ser a mais profunda eternidade, juntar-se-ão ao final à imagem nenhuma, ou à uma imagem que não poderemos entender. Não estaremos lá para dizer que não podemos ver o que nos rodeia, nem mesmo se o tempo nos levasse em consideração.
 O tempo em que se passa enfermo, se arrastando pela vida, como um ser pela metade, que importância podemos lhe dar? Nenhuma. Melhor fugir dele como o próprio tempo o faz, ao fugir de si mesmo a todo tempo. Não há nada em que se possa apegar. Eu preciso de memória. Mas ela vai fugir de mim um dia desses e eu nada mais saberei sobre 'meu' eu. Do que adianta sabedoria sobre a efemeridade?
Desejo escrever um poema no corpo do vento, invisível e flexível e descompromissado. Fluir como a água pelo leito da terra. Desaprender a ser eu mesmo o tempo todo. Desconectar-me do tempo, da ideia que faço do outro, da importância da opinião do outro sobre mim, não impedir que outros tenham uma voz própria, o momento de glória de cada um no vitral de areia, em ato efêmero de contingência.
A caridade é vaidade; a insensibilidade, crueldade. Formar, moldar, evoluir, o mundo é uma máquina inventada pelos despensares dos homens obtusos. Por que deveria me importar com o que eles pensam? Me cansei apenas de tentar entender, de dominar a palavra e de me inserir de modo produtivo nessa cebola irreal com suas infinitas camadas de realidade ilusórias.
Minha lavoura é o abandono. Deixar órfãs as informações da memória, elas que migrem para outro almanaque e no seu transladar, se esfarelem como os grãos de areia da mandala que está sob os pés de quem quer permanecer sobre o imponderável.
Yogananda, entendi que o TAO é o que nos resta, ou a única coisa que sempre deveríamos ter seguido, mas tal como alguém que não quer seguir nada. Quando nos deixamos levar pelos descaminhos, podemos rir sem saber do que rimos; enfim edificar-se-á o caminho aos nossos olhos. 
As melodias mortas continuam tocando. O parque de diversões gira sua roda e dançamos como bonecos de ventríloquos. Preciso escrever sobre a vida das árvores, das flores, do favo de mel. A voz do cachorro na água que escorre da torneira é quase que metafísica. Os chinelos de Buda não existem mais e até que ponto isso afeta o universo, não sei. Mas penso que é melhor ficar descalço na praia. O coro de gaivotas, o fluxo silencioso dos barcos, o vento cantando sobre o copo de cerveja. Zen, baby! 
Perguntaram-me sobre meu ofício. Não tenho. Queria ser especialista em esquecer.