Julio Cortázar
Luc é um menino, um personagem de um
conto de Julio Cortázar, a Flor Amarela.
Uma estranha história de um estranho contista pra seus bizarros leitores. Cortázar
nos revela, em sua obra, os estados sombrios da vida humana nos trâmites mais
comuns do cotidiano. Deveras, é assim a atmosfera misteriosa desse conto abissal.
Tudo gira em torno de um homem comum que se encontra consigo mesmo num ônibus circular. Quando olha um menino de
nove anos, Luc, ao seu lado, entende que os dois são a mesma pessoa. A voz infantil
anunciando ao cobrador que era hora de descer na próxima parada, se torna a confirmação
oficial e inquestionável de que a voz do menino era a sua voz de tempos de criança. Ele e
Luc eram a mesma pessoa. Não havia como negar.
O protagonista, então, segue Luc e os
dois ficam amigos. Lentamente ele vai descobrindo que os fatos da vida do garoto
são os mesmos de sua própria vida. Claro, não era uma precisão digital, mas
Luc quebrou um pé quando tinha sete anos; ele, a clavícula. Luc sofrera com a
catapora; ele, com o sarampo. Tudo era uma repetição analógica e
constante dos eventos no tempo de cada um.
A explicação de Cortázar para esse fenômeno
é que todos somos imortais, porque voltamos a viver de maneira constante e ininterrupta. Com tantos retornos, claro, seria 'normal' ocorrer uma falha e eis que seria possível encontrarmo-nos com aqueles indivíduos
que eram nós mesmos. E isso num mesmo espaço, mas em tempos diferentes. Alguém pode vir antes da hora, ou se atrasar. Somos assim, conflituosos até mesmo na hora de escolher
como trilhar o tempo e o espaço.
O conto é uma bela metáfora sobre o porquê
de termos, às vezes, uma afinidade, uma atração incontrolável por certas pessoas.
Algo que prescinde de palavras, razão e lógica. Mas isso também pode nos deixar
tristes, cabisbaixos. Temos muito mais estranhamentos, antipatias, antíteses do
que proximidades nesse vasto mundo. Somos uma imensidão de indivíduos ávidos
por encontrar a nós mesmos entre uma massa de estranhos que nos cerca e, dessa
forma, suavizar um pouco a amarga condição solitária da existência humana.
Já encontrei comigo mesmo e faz pouco
tempo. Cortázar tem razão, o fenômeno é possível. Quando isso me ocorreu, fui
tomado por uma alegria profunda. Renasci para uma série de sonhos que já haviam
morrido em meu corpo e descansavam esquecidos em seus jazigos. Devo confessar
que esse outro eu era uma alma maravilhosa, cheia de beleza, cabelos claros, pele lisa e seios simétricos. Nunca pensei que isso pudesse
acontecer. Eu queria por demais ter a mim mesmo nos braços. Passei a fazer tudo o que era possível para chamar minha própria atenção.
Não tenho dúvidas de que me
encontrei comigo mesmo num vacilo do tempo sobre o espaço. Somos como a luz nos
conceitos quânticos: parada e em movimento. Dois pontos unos em dois lugares equidistantes no universo. Um deve ficar no mundo dos sonhos, onde vivem as almas; já o outro deve caminhar sobre a Terra. Às vezes quem fica é impaciente e segue a si mesmo pelo
mundo.
Você quer saber como eu tenho certeza
disso e por que posso ser testemunha do contista argentino, Julio Cortázar? É simples!
É que quando encontrei meu outro ser, o amei mais do que a mim mesmo. Eu só pude
direcionar tanto amor a esse outro ser em carne e osso, tal como fiz, porque
estava diante de algo que era eu mesmo. Fácil?
Não posso e nunca fui sou capaz de amar
a mais ninguém nesse mundo além de mim mesmo. Por isso entendi que, enquanto
amava esse outro eu mais do que a mim mesmo, tratava-se, ‘evidentemente’, desse
fenômeno descrito por Cortázar. Em resumo: vivi um brutal acidente que me jogou
num profundo ato de amar a mim mesmo que me corroeu até o DNA da alma. Não sobrevivi
porque estou morrendo, como todo e qualquer ser humano.
Luc, porém, morre em definitivo no conto
de Cortázar e liberta o protagonista da convivência com seu outro eu. No meu
caso, como não sou confiável, acabei por abandonar a mim mesmo. Talvez tenha
sido vulgar, tenha feito coisas que me desapontaram de forma imperdoável. Mas
afirmo que também me decepcionei com esse meu outro eu. Talvez por ele ser jovem
e ter desejado encontrar coisa melhor. O que não é difícil.
Nunca mais me vi e, acredito, devo estar
caminhando pelo mundo tentando esquecer de mim mesmo e procurando um outro amor
que não seja eu. Mas como amar a um outro ser estranho que não seja eu mesmo? Vou
sair de minha cabeça e conversar comigo mesmo, como se fôssemos três. Pai,
filho e espírito louco.
Que Augusto dos Anjos nos guie através dessa
multiplicação de egos. O milagre dos Eus!
Onde basta adicionar mais uma letra para que todos os eus se tornem ‘d-eus’. Como disse
Fernando Pessoa, “afinal, deus é toda a gente!”.