Foi logo nas primeiras horas do ano. Terminado o baile, mãos no
bolso e cigarro de chocolate no canto da boca, que fui pelas ruas desertas em
busca de uma água mineral, seria a primeira de 2019. A gente pensa nessas
coisas depois do Revellion: a primeira água, a primeira porta que se abre, a
primeira pessoa com quem se fala, etc. Precisava encontrar um boteco aberto.
Será, àquela hora, na primeira aurora de 2019? Enquanto houver botecos haverá
esperança. E assim encontrei o meu, como um peregrino encontra um oásis num
deserto.
Atrás do balcão havia um homem no formato de um ovo, careca,
peitudo e barrigudo, que enxugava um copo com um pano de prato amarelado e
engordurado, por isso pedi uma lata de cerveja (esqueci da água mineral).
Gostei dele só porque me atendeu sem dizer o ‘feliz ano novo’ que tanto eu já
tinha ouvido. Ele me deu a lata e eu paguei. Quando me virei para sair, no
canto, três caras fantasiados discutiam sobre um pedaço de couro esticado sobre
a mesa enferrujada. Turbantes, batas e potes estranhos. Um deles era negro.
Olhei pro dono e ele me fez sinal de que não sabia do que se tratava. Achei que
era o espólio de algum baile à fantasia, nada de anormal para o tipo de
festividade que havia acabado.
Dessa vez eu fui o chato, me aproximei no intuito de ver mais de perto
o que eram aquelas criaturas, e para isso usei o ‘feliz ano novo’ como
disfarce. Todos olharam pra mim, tinham expressões tristes. Nos potes havia
trigo, mirra e incenso. “Céus!”, exclamei alto, afinal estava à frente dos três
Reis Magos, e pareciam mais perdidos do que cegos em tiroteio; o couro sobre a
mesa era um mapa. O mesmo que usavam há dois mil e dez anos. “São vocês
mesmos?” Todos confirmaram. Puxei uma cadeira e pedi outra cerveja ao homem
ovo. Voltei para o trio e resolvi perguntar, “Qual é o problema, por que estão
tristes?”
A resposta foi simples, há muito não encontravam o Menino Jesus.
Quando chegavam, dia 06/01, dia de reis, os presépios já tinham sido
desmontados. Quando encontravam um ou outro ainda em ato, era muito mais pela
preguiça do proprietário do que desejo de espera pelos reis magos. Além disso,
o menino também se mostrava impaciente. Não queria saber de trigo, mirra e
incenso. Queria vídeo-games, IPODs, celular, computador, um revólver taurus
e/ou passagens para Disneylândia e lugares afins. Ou seja, eram obsoletos.
Gaspar deu um murro na mesa e disse, “É culpa do Papai Noel,
aquele...”. De certa forma ele tinha razão, com o patrocínio de refrigerantes e
apoio logístico de Hollywood, Papai Noel havia se tornado na grande estrela do
Natal: filmes, desenhos, comerciais e logomarcas estimulavam muito mais o
consumo do que o nascimento de um menino numa manjedoura, cercado por animais e
presenteado, dias depois de seu nascimento, por três reis magos com presentes
simbólicos.
Baltazar chorava, lembrou-se de São Francisco, “...e os pobres
animais do presépio, todos viraram churrasco!”. Era fato: bois, cavalos,
galinhas, ovelhas tornaram-se sinônimos de carne assada na brasa. Ninguém mais
se lembrava deles no Natal, haviam aquecido o menino com seus corpos quentes,
mas ninguém se lembrava mais deles, nem as crianças. Era trágico, Papai Noel,
com certeza, era um funcionário da CIA, e sua função era fazer com que os
homens do mundo pensassem como os norte-americanos; maior sucesso teria a
tarefa se ela começasse com as crianças. Natal é consumo.
Com as primeiras lágrimas nos olhos de 2011, resolvi comprar briga
com Papai Noel em defesa dos três reis magos. Pensei numa guerra do tipo X-Man,
mas os três sábios me dissuadiram. ‘Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade’ era
o princípio básico do Natal, e não uma guerra. Eles tinham razão, então pedi
outra cerveja ao homem ovo que deixou claro que estava ao nosso lado na futura
cruzada contra o homem refrigerante que se chamava Noel.
Eu não agüentei e desabafei, “...vocês ainda andam de camelo e o
Noel vai de helicóptero”. A concorrência era desleal. Mas a esperança não morre
fácil. O homem ovo trouxe seu filho pela mão, ele morava nos fundos do boteco,
além do balcão ficava não só a cozinha do bar, mas também sua casa.
Belchior sorriu pro menino e o colocou sobre o joelho. Do trigo
dourado, (que muitos pensam ser o ouro, inclusive teólogos), emanou uma luz,
ela pairava sobre a mesa. O menino sorria, eu e o homem ovo ficamos no lugar
dos animais, de nós exalava calor. Da mirra e do incenso vieram aroma, limpeza,
tudo ficou como a água pura da montanha. A singela mulher do homem ovo saiu
detrás do balcão, veio até a mesa, beijou as mãos dos magos, tomou o filho de
volta e os reis entregaram a ela os presentes.
Os reis se curvaram e saíram, o boteco parecia novo. Fui até a rua
e me deparei com uma neblina nada comum nessa época, então vi a silhueta dos
Reis Magos em movimento e até agora não consegui me esquecer do barulho dos pés
dos camelos. Voltei pra mesa, dessa vez o homem ovo se sentou comigo, tinha os
olhos úmidos. Encheu dois copos de cerveja e disse, “...é por conta da casa”.
Agradeci, bebi e perguntei, antes de sair:
- Obrigado, senhor...
-...José.
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