Foi nessas noites em que a garoa cobre a cidade. Eu estava saindo de uma padaria, passando em frente a uma igreja protestante e ele saiu com sua capa preta, ar de cansado e fumava um cigarro amassado. Enfiou as mãos nos bolsos e começou a caminhar ao meu lado. É feio deixar os outros sozinhos na calçada, quando se caminha na mesma direção. Disse “boa noite”. Ele só balançou a cabeça e disse, “...tenho plantão em quase todas as igrejas, sexta é dose.” Em suma, ele recebia para entrar nas igrejas e se apossar de algum espectador. Com o domínio do corpo do pobre fiel, se jogava no chão e começava a se estrebuchar. Em seguida vinham os cavaleiros da salvação e faziam o exorcismo. Durava não mais do que cinco minutos. Ele saia e o pobre voltava ao normal. E logo ia para outra sessão, em outra igreja, ainda em andamento.
— Você não é onipresente? — Perguntei inocentemente. Ele disse que essa patente era de Deus. Já havia tentado uma utilização simultânea com primos, só que deu zebra, a parentada bebia demais e as possessões caiam no descrédito. O máximo que havia conseguido era uma terceirização com Judas Escariótes e Barrabás, que também atormentavam nos centros kardecistas, o que criava uma sobrecarga. Os demônios da antiga Babilônia já estavam aposentados e viviam em paraísos fiscais. Ainda curioso, puxei mais assunto.
— Mas aos fins de semana você está livre? — Outro engano. Disse que aos sábados trabalhava pros católicos. A renovação carismática requisitava muito sua presença, tal como também já ocorria nos cultos protestantes. Era de domingo a domingo. Férias? Nunca! Convidei-o para um café no balcão do bar em que passávamos em frente. Ele agradeceu e disse:
— Enfim, um gesto cristão.
Ele não quis adoçante nem açúcar. Me disse secretamente que causavam impotência. A garçonete que nos serviu tremia dos pés a cabeça. De perto era possível ver que ele tinha olhos vermelhos e a face lembrava a de um bode. Mas tinha um ar cansado. Quis saber mais de tão milenar entidade e perguntei se gostava de futebol. Se era torcedor do América do Rio, cujo símbolo era o próprio.
— Que América! Sou Flamengo e tenho uma diaba chamada Tereza! — Afirmou que os plantões na Gávea lhe davam muito serviço, principalmente no campeonato de 2010. Atender nas igrejas, nos centros espíritas, no campeonato brasileiro, nas novelas da Globo e no jornalismo em geral era asfixiante. E ainda tinha um milênio para se aposentar, no mínimo. Dei-lhe uma idéia.
— Já pensou em falar com Jesus? — Revelou que sim, mas disse que Jesus só trabalhava na semana santa e no resto do ano era com ele. Era essa a finalidade do contrato entre o céu e a terra desde o começo dos tempos. Indiquei os serviços de um bom advogado. Desanimado, afirmou que no inferno havia toneladas deles. Mero jargão eu havia dito, mas na hora a gente quer ajudar e acaba dizendo obviedades.
Terminamos o café e vimos, à porta do bar, Judas e Barrabás. Tinham cara brava. Faziam gestos de indignação. Disseram: “Temos centenas de igrejas, centros e catedrais para percorrer e senhor aí, chefe, só no cafezinho? Vergonha, hein? Preguiça é um dos setes pecados capitais!”. O chefe da camarilha limpou a boca com as mãos, deu um tapinha nas minhas costas, agradeceu, e disse que era melhor ouvir aquilo do que ser surdo, saiu. Mas quando estava atravessando os batentes do bar, perguntei sobre as seitas afro-brasileiras. Respondeu que se filiara ao Greenpeace e agora era contra o sacrifício de animais. Acenou e os outros também fizeram o mesmo. Porém, fui até a porta e perguntei, pela última vez:
— Ei, eu costumo tomar café da manhã por aqui. Já que vão passar a noite tornando o mundo mais infernal, eu pago café pra vocês aqui neste mesmo lugar. Que tal? Assim posso saciar uma série de dúvidas, coisa de sociólogo.
O Diabo tirou uma agenda do bolso e começou a ler. Coçou a cabeça e disse:
— É uma pena, mas não dá. Amanhã temos encontro com Zé Serra, ele quer ressarcimento, como cê sabe, não deu. Ele perdeu. Agora tá culpando a gente.
— Então leva um bom advogado.
— Com certeza, filho. Michel Temer.