Chico Bento
Os milhares de leitores de Maurício de Souza, autor dos gibis da turma da Mônica, não passaram a falar como Chico Bento porque leram suas histórias. Os leitores de Guimarães Rosa também não passaram a falar como os jagunços do interior do norte de Minas Gerais, quase um dialeto, porque leram o livro Grande Sertões Veredas. Não se pode deixar de estudar as várias maneiras de se falar e de se escrever. Primeiro é preciso lembrar que a finalidade da língua é a manutenção da comunicação entre nós, seres humanos, e não a manutenção de regras rígidas de normas gramaticais.
Em termos filosóficos pode-se questionar: quem inventou a Gramática? Por que devemos seguir normas que não ajudamos a criar? Na realidade, dificilmente, ajudamos a manter leis e regras que não têm significado profundo em relação aos nossos hábitos e perspectivas. Se assim fosse, as mulheres ainda se casariam virgens e todos nós teríamos a mesma religião, ou mesmo time de futebol.
O MEC lançou, recentemente, um livro didático de Português, “Por uma vida melhor”, de Heloísa Ramos, onde se encontra frases como “nós pega o peixe”, “os livro” e mais maneiras de se falar nas ruas e bairros distantes dos grandes centros urbanos e também dos centros acadêmicos. Ocorreu uma enxurrada de críticas, principalmente dos ‘grandes articulistas’ da mídia, preocupados porque agora iríamos passar a falar errado em todo país; esses articulistas são homens e mulheres com formação ‘superiorzíssima’, que em casa, depois do trabalho, com certeza, ouvem a não menos cult, Marisa Monte, com sua belíssima voz a propagar um “beija eu, beija eu”; ou se soltam em festas de confraternizações, depois de alguns goles de uísque, e cantam e dançam canções de Adoniram Barbosa e ainda berram, “ ...o Ernesto nos convidou, pro samba ele mora no Brás, nos fumo...” e segue lista.
Não podemos nos esquecer que a própria Escola é um livro didático. Quando se organiza as famosas Festas Juninas, e gritamos no pátio, “óia a cobra!! É mentira” “Ô trem bão, sô!”, nos ensaios e apresentações de quadrilhas, nem nos preocupamos se depois da festa as crianças vão passar a falar assim. Por que será? Será que é porque fica claro que é uma maneira de se falar num espaço que, culturalmente, entendemos como rural, caipira, etc.? Ou seja, que tem sua riqueza de expressão própria e que de certa forma, convivemos com ela e até fazemos festas em sua homenagem (?)
Percebo o cheiro do preconceito sobre o fato. Mas ao mesmo tempo a polêmica é salutar. Ela nos remete a um velho debate sobre a ideologia, implícita ou explícita, nos textos didáticos; ou em qualquer outra forma de expressão escrita. Ou seja: é o sujeito que é formado pelo texto, ou é o sujeito quem forma o texto?
O fato é que devemos nos manter calmos, não vamos abraçar uma crise de nervos e nem mesmo nos apavorar “com aquilo que ainda não é mesmo velho”, como diria Caetano Veloso e outros fãs mais ardorosos do músico baiano. Sigamos banhados pela luminosidade do compositor Valter Franco e seu mantra (oração) mais belo: “o importante é ter a mente quieta, a espinha ereta e o coração tranqüilo”.
No mais, é ler. De Shakespeare a Bukowski; de Celine a Pessoa; de Sartre a Vinícius de Morais; do Eclesiastes a Marquês de Sade; ad infinitum...