sexta-feira, 8 de novembro de 2019

A incompatibilidade do professor com o fascismo



A influência do nazi-fascismo no pensamento político

A palavra, fascismo, descende de uma arma usada no império romano, fascio littorio, um machado com cabo feito de varetas − fascio − que um soldado (lictor) usava para proteger os magistrados. Significado: uma vareta isolada é fácil de quebrar, mas várias bem amarradas entre si são inquebrantáveis. Foi desse objeto que se extraiu o conceito de que a ‘União faz a Força’, cujo significado deveria ser adequado à vida em sociedade.
No século XX, 1914, na mesma Roma, Benito Mussolini criou o Partido Nacional Fascista, que não possuía um estatuto definido, nem um manual doutrinário impresso, mas se desenvolvia com base nas respostas de Mussolini aos mais variados problemas da Itália. Ou seja, a visão empírica de Mussolini sobre a realidade foi a base ideológica do fascismo na Itália. Visão essa temperada por valores de tempos passados, onde Roma era o centro do mundo, graças a sua capacidade de se organizar coletivamente.
Logo após a primeira Guerra Mundial, Mussolini afirmava que o grande problema da Itália era a falta de uma união nacionalista capaz de redimir a Itália da fragmentação. O remédio, claro, era a manutenção de uma sociedade padronizada que levaria à Ordem e ao Progresso. Mussolini propagava que o papel do Estado era fundamental para que o fascismo triunfasse, por isso o mesmo deveria se ocupar somente da segurança pública, todo o resto deveria ser entregue à iniciativa privada (o que caracterizou a ideologia como extrema direita), para que trabalhasse de acordo com as diretrizes desse mesmo Estado. Ou seja, Mussolini pregava uma desestatização desenfreada no setor econômico.
Dessa forma, a receita do Duce para a construção da então ‘moderna’ sociedade italiana dos anos de 1930, partia da premissa de que todo indivíduo deveria ser moldado e adequado à máquina moral do Estado fascista. A família, a escola, o exército, a religião e a cultura deveriam ‘aperfeiçoar’ o indivíduo para que se tornasse uma eficiente peça subjacente ao sistema Estatal que o ‘protegeria’ das ‘perversidades’ da vida. O indivíduo precisava querer se integrar ao sistema com boa vontade, humildade, dedicação e com desejos de propagar tal ideologia. Em poucas palavras, o indivíduo era ‘livre para escolher o fascismo, ou o fascismo’.
O fascismo se espalhou pela Europa após a Primeira Guerra Mundial, mas foi na Alemanha que adquiriu contornos mais ‘sofisticados’ sob o ponto de vista da ideologia em si, e do poder de alcance de um Estado Totalitarista no continente. Hitler, ex-soldado da Primeira Guerra, artista amador (pintor) e amante da música de Wagner, encheu de esteróides o fascismo italiano com seu livro, Minha Luta, Mein Kempf, e o introduziu no Partido Nacional Socialista alemão, ao mesmo tempo em que o dominava politicamente.
O primeiro livro que Hitler ‘queimou’, literalmente, foi o estatuto desse Partido Nacional Socialista, onde seus discursos apaixonados tomaram corpo na ‘consciência’ de um gigantesco número de indivíduos desesperados, vítimas da crise econômica alemã, a ponto de abrirem mão da própria opinião e senso crítico para abraçarem a ‘esperança da criação de uma de nação paraíso’ que se ergueria, e o mais breve possível, quanto mais fosse capaz de destruir seus inimigos ‘históricos’, que era a própria diversidade humana constituída pela somatória das individualidades.
Ou seja, o nazi-fascismo, na Alemanha, era uma máquina estatal programada para destruir as diferenças, e se tivesse conseguido alcançar seu destino terminaria vazia de seres humanos, pois continuaria sua destruição mesmo entre aqueles que a edificaram. Esse ‘distópico’ e constante movimento destrutivo, alimentado por uma ânsia insaciável pela assepsia da diversidade, levaria esse sistema a criar um único e ‘feliz’ sobrevivente, o estereótipo do homem branco, ariano, capitalista, cristão e alemão, diluído numa massa de pessoas uniformizadas e sem nenhuma visão crítica da História e de seu próprio papel no mundo.     
O nazismo, (abreviação de nacional-socialista), decolou rumo ao poder com as aberrações propagadas por uma mente doentia, intoxicada pela “banalização do mal” e se transformou numa ‘consciência’ coletiva e sem pudor algum. Sua tétrica história, cujo ápice foi a utilização da ‘razão’, da tecnologia e da ciência para sofisticação de campos de extermínio do povo judeu, deve habitar a dolorosa memória coletiva histórica. Eis o motivo da necessidade constante de uma racionalidade crítica e democrática, no mundo ocidental republicano, para que a humanidade nunca mais pratique essa desumanização desenfreada, sofisticada e, eficiente tecnologicamente, com ela mesma.
Sim, a corrupção da razão humana foi usada como um bisturi para mutilar o corpo social diversificado para a edificação de uma barbárie sofisticada e altamente organizada. Matar com eficiência, e em alta escala, tudo aquilo que não era ‘nazista’, era sinônimo de um progresso abençoado por Deus e pelo Fuhrer. Afinal, diziam, e ainda dizem, os irresponsáveis simpatizantes do neo-nazismo, que Hitler recuperou a combalida economia alemã no período do entreguerras, o que justificaria as atrocidades cometidas como ‘meios’ que produziram fins entendidos como desenvolvidos e de uma nova ‘civilização’. Ou seja, uma demência.       
O nazi-fascismo representou a expressão maior do pensamento da ultra direita, onde um Estado (i)moralmente opressor e incompatível com o desenvolvimento cultural e artístico dos indivíduos, já que os mesmos deveriam ser padronizados pela moral da estética nazi-fascista e, caso o contrário, agissem eles mesmos por concepções próprias, nessas expressões culturais, tornar-se-iam ‘subversivos’ e passíveis de um ‘afastamento’ do convívio social, pois eram ‘identificados’ como um vírus no organismo criado pelo Fuhrer. Logo lhes caberia a censura e a condenação à morte, em nome do ‘bem’ da sociedade.
Faz-se necessário entender que, se a ultra-direita nazi-fascista privatizou o sistema econômico, em contrapartida, estatizou a estética e os caminhos que deveriam levar às expressões culturais de um modo geral. O Fuhrer só poderia ser exaltado, jamais criticado. A maneira como o Estado (o Fuhrer) determinava como o indivíduo deveria ‘ser’, afastava do horizonte o sentido democrático da sociedade e com ele o parco conceito da liberdade individual histórico filosófico. – Entenda-se o Estado de Direito como algo conduzido por uma Constituição e não por uma pessoa que se diz líder, mito, enviado de Deus, dono da razão, etc..
Podemos nos arriscar em questionar, dentro dessa sociedade nazi-fascista, qual seria o papel do professor e da própria Democracia, já que nos dias de hoje, em pleno século XXI, o espectro do nazi-fascismo emergiu com uma relativa força após a crise econômica de 2008, num ‘remake’ mais ‘suavizado’ do que ocorreu em 1929, onde o nacionalismo exacerbado levou ao altar do poder, na Europa, o nazi-fascismo como solução para os problemas criados pelo chamado ‘capitalismo constitucional ocidental’.
Parece que é quase sintomático: depois das crises econômicas, 1929 e 2008, a civilização ocidental adentrou numa ressaca de teor nazi-fascista. É paradoxal que esse nazi-fascismo pós-crise imobiliária de 2008, esse que nos ameaça, tenha dificuldade em se generalizar, a bem de todos nós, graças aquilo que também o fez se espalhar de uma forma muito maior do que se supunha imaginar, em tempos atuais: a internet com suas redes sociais, com amplo poder de divulgação de falsas notícias e falsas interpretações da realidade histórica. Porém ela é também o lugar onde se combate essa abominação.
O neofascismo tenta se propagar, nesse século XXI, por meio de um método que visa substituir a História por teses individuais de viés neo-totalitaristas. Esses nazi-fascistas pós-modernos (a benção Bauman, pelo termo pós-moderno) são os iconoclastas atuais da História. E o que vai nos proteger da extensão e contaminação do fascismo que ocorreu na primeira ressaca, após 1929 até 1945, com o fim da Segunda Guerra Mundial, e mais suas conseqüências devastadoras para a humanidade, é nossa capacidade de manter o senso crítico de punhos em guarda e no centro do ringue do debate político. Afinal, as forças produtivas do Capital devem ser direcionadas pelo discurso político, ou o discurso político deve ser formatado pelo discurso econômico engendrado pela força motriz do capitalismo financeiro? “Ser ou e não ter; ter e não ser, eis as questões!” Ou seja, o fascismo surge da oscilação do sistema capitalista. Em períodos de declínio econômico, crise, a vingança se transforma em sentimento de justiça ao eleger os culpados por essa mesma crise. E o pior é que a esperança coletiva é substituída por um sentimento de extermínio, uma semente bizarra pra ser usada em nome da construção de um futuro para as futuras gerações.                  

A incompatibilidade da Democracia com o fascismo   

1)      A Democracia

A Democracia surgiu na Grécia Antiga, em Atenas. Foi um processo político que se iniciou no século VII a.C., com Drácon e teve seu auge no século IV a.C, com Clístenes e Péricles. De forma resumida, o povo ateniense havia conquistado uma série de direitos graças aos movimentos políticos, pois Atenas não tinha um código de leis fixo, era esse processo político, baseado nas discussões na Àgora, com suas votações abertas, quem determinava o formato da razão ‘legal’ que habitaria o senso comum do cotidiano ateniense.
A palavra Democracia pode ser traduzida como o ‘poder que vem do povo’. Porém, a palavra, ‘demos’, tinha vários significados, mas para o processo político, tal palavra era sinônima de ralé, ‘povinho’, os pobres e etc.. Para outras cidades-estados gregas, onde o poder era aristocrático, democracia significava, ‘poder dos pobres sobres os ricos’. Lembrando que aristocracia é justamente o contrário.
O motivo dessa forma política, baseada na diluição de poder, ter nascido em Atenas será sempre um mistério. Talvez possamos nos arriscar em ressaltar o aspecto metafísico dos gregos e sua relação como os mitos. Os gregos acreditavam que todo cidadão comum, ao ‘desencarnar’, habitaria o mundo inferior controlado pelo deus Hades, cuja descrição se igualaria ao inferno cristão. Vida eterna, na Grécia Antiga, ‘feliz e farta’, somente aos heróis que os deuses, em seu eterno Olimpo, permitiam nos Campos Elíseos.
Muito provavelmente, os habitantes de Atenas, influenciados por esse tipo de senso comum, entendiam a realidade, ‘grifo nosso’, como algo efêmero. Deveras, qualquer um, com um mínimo de senso crítico, perguntaria a si mesmo e aos outros qual o sentido da vida naquela cidade, onde os homens comuns não tinham terras, dinheiro, nem poder político e quando morressem, ‘submergiriam’ ao reino de Hades? E assim era desde o começo dos tempos. Mas por que não mudar a realidade?  
É inevitável apontar que, a democracia grega, surgiu como uma resposta a essas privações materiais desses homens comuns que habitavam os espaços rurais e urbanos de Atenas. A razão, que produzia as leis e as soluções para os problemas imediatos, fora invadida por uma horda de sem terras nas votações abertas da Ágora e isso transformou para sempre a história da humanidade.  − As propriedades agrícolas eram chamadas de demo; a mão de obra dessas terras também era chamada de demo.
Assim, o milagre da democracia ateniense está enraizado na capacidade de fomentar os desejos de uma vida melhor, não num futuro pós morte, mas no aqui e agora do corpo vivo, ao organizar um conjunto de idéias que se baseavam na diluição de poder, na distribuição da renda e na despersonificação do poder. Uma razão universalizada brotou da Àgora, graças aos estímulos de três ferramentas que habitavam o discurso político, ou melhor, o direto do cidadão ao discurso político: 1) isocracia: todo cidadão tem direitos políticos iguais; 2) isonomia: todos são iguais perante a lei; 3) isegoria: igualdade dos cidadãos no direto à liberdade de expressão.
Se no fascismo do século XX o Estado se transformou num cão de guarda da propriedade privada, ao mesmo tempo em que obrigava esses proprietários a um compromisso moral com os‘valores’ fascistas, a democracia ateniense propagava a necessidade da participação de um maior número possível de cidadãos no processo produtivo de sua polis. Mas deveriam ser cidadãos racionais, com liberdade de pensamento crítico e compromissados com esse sistema democrático que visava a alternância, não só na representatividade, como nos problemas que deveriam ser abordados por essa razão.
Nunca devemos esquecer que a polis ateniense permitiu a existência de homens como Sócrates, que apesar de julgado e condenado a morte pelo teor de suas idéias, teve uma longa história de diálogos, retóricas e críticas ao sistema (o poder) com seus amigos e inimigos. Numa sociedade fascista, alguém como Sócrates mal poderia começar sua trajetória. Lembrando que essa mesma Atenas também gerou uma série de homens de pensamentos independentes, os chamados filósofos. Um dos grandes exemplos é Platão, que produziu idéias e conceitos que eram muito mais devastadores para os eternos enamorados da concentração de poder e riquezas do que o próprio Sócrates.

Da incompatibilidade do professor com o fascismo

Bem, esse texto começou com a intenção de tentar explicar por que um professor não deveria votar num candidato fascista, numa eleição de um país republicano e moderno, em pleno século XXI. O adjetivo ‘moderno’ foi usado mais como uma noção de localização cronológica do Brasil na histórica mundial, do que como propriedade, qualidade dessa ‘nossa’ nação.
Detalhe: o Brasil está na modernidade, mas ainda não sabe qual seu papel nesse mundo, além de não saber ainda o que é ser moderno. Em termos gerais, limita-se a entender-se como um país do agronegócio. Uma definição pequena para um povo que poderia ser grande.

O papel professoral do educador no fascismo

a)      Numa sociedade fascista, ou de viés fascista, o professor estaria mais para um doutrinador cuja tarefa seria a de ‘aparar as saliências’, os ‘defeitos’ dos indivíduos para que esses possam se encaixar no padrão idealizado pelo Estado. Quanto mais o indivíduo, via sistema de educação, potencializar suas capacidades para ser uma peça subjacente e ‘eficiente’ ao Estado, melhor seria o resultado dessa educação.

b)      Inevitável concluir que tal função professoral, ao mesmo tempo em que alimenta esse sistema fascista, oblitera o desenvolvimento do indivíduo no sentido evolutivo da formação humana, ou da autoformação de uma identidade que o caracterizaria como ser único e indivisível, e que constituiria sua personalidade. Tal como as digitais dos dedos são únicas, a mentalidade, essa capacidade de ver o mundo e de senti-lo, somado à necessidade da liberdade de expressão oriunda dessa visão crítica, é também um fenômeno único e de vital importância à organização social em que esses mesmos seres (alunos) vivem. Aniquilar a criatividade e o processo crítico, em prol de uma ideologia, compromete o futuro da sociedade, tanto da ‘Arte’, quanto do ‘Empreendedorismo’ e sem falar na ‘Ciência’. – O fascismo, ao combater a criatividade e o senso crítico, em sua eterna necessidade de manter-se como poder e sentido moral da sociedade, nada mais faz do que impedir, como uma máquina de destruição, a evolução natural do processo de humanização, além de condená-lo à marginalidade. Claro, toda essa problemática existencial fica escondida por debaixo dos tapetes da razão, ante ao espetáculo da Ordem exibida por batalhões de indivíduos que deixaram de ser indivíduos, ao incorporar o desumano processo de militarização dos direitos humanos.               

c)      A própria função do professor, nessa sociedade fascista, se torna algo professoral, algo que associa eficiência ao cumprimento de um protocolo determinado por forças protocolares externas ao processo de ensino aprendizado. Essas forças fascistas externas, visando a manutenção de si mesmas, impõem a professores e alunos os estereótipos educacionais e profissionais que lhes interessa. Sob essa força de controle, o discurso professoral assemelha-se às funções de padres e pastores que produzem discursos baseados naquilo que o próprio rebanho já conhece, ou que já tenha por informação doméstica do que seja o ‘Conhecimento’. O controle protoclar fascista cria um território e uma fronteira para o conhecimento, atravessá-la, torna o indivíduo que está professoral num subversivo. Tal fronteira não pode ser quebrada e, caso ocorra uma ‘transgressão de liberdade de pensamento’, num momento de cognição, constituir-se-á uma heresia, um sacrilégio aos parâmetros da vida ideologicamente ordinária. Tal ato, se detectado pela administração da instituição, muito provavelmente retornará ao indivíduo professoral, algo no formato de sindicância, processo administrativo e/ou outra punição burocrática qualquer. Que fique claro a esse indivíduo professoral, passivo de ser processado, em qual território do conhecimento ele deve permanecer e jamais quebrar as fronteiras desse espaço autorizado. Mesmo que quem o autorize a professorar não tenha formação pedagógica, filosófica, antropológica e sociológica e etc..                           
                           

O professor e a Democracia

Numa suposta sociedade democrática, o papel do professor seria vasto e de difícil definição. Deve-se salientar que toda definição corre o risco de se tornar ideológica e logo petrificada com o passar do tempo, e muito fácil se torna incompatível com os desejos de outros indivíduos.
Nessa democracia, uma utopia ainda, nesses mesmos tempos pós-modernos, o professor deveria ajudar, permitir, estimular, o aluno a descobrir tudo aquilo que a família, o Estado, a cultura, o consumo, a educação, o trabalho ‘desejam’ dele. Que sentimentos emanam dessas estruturas em relação a ele? Que projetos essas mesmas estruturas projetam e/ou impedem em relação a ele?  Quais projetos (desejos) são os dele, quais são os dessas estruturas e quais são dos grupos sociais em que ele vive?
Já em nossa parca Democracia (i)real, um professor não professoral transmitiria a crítica a seu aluno, único bastião da imparcialidade, sobretudo quando esse passa a ser capaz de entender os discursos produzidos pelo senso comum, aqueles que alimentam as verdades que conduzem o corpo social em sua jornada histórica ‘das trevas da ignorância às luzes do progresso científico’.
Revelar as falsas verdades tais como os ‘meios’ criminosos que a sociedade edifica para seus ‘fins’ maiores’, que ela se permite cometer, mas que proíbe a ponto de exterminar um indivíduo que atue da mesma forma. O Estado pode ser livre para burlar a lei, o indivíduo não. O Estado Democrático Liberal, apesar de ser o mais evoluído e mais avançado do que as outras formas de organizações políticas ocidentais, também parte de um equívoco, de um processo ideologizado para a manutenção de si mesmo na consciência social, como a única forma de poder racionalmente organizado, até porque se basearia, em tese, na liberdade, em seu primeiro e simbólico artigo: todo indivíduo é livre porque é proprietário de sua própria força de trabalho e que, associada ao livre arbítrio e ao Estado Direto, instaura-se, nessa ‘sociedade livre’, o fim das injustiças históricas; além de cessar a predação do homem pelo homem. Fraternidade, igualdade e liberdade.
Em Nossos tempos ‘líquidos’, as mentes racionais do Iluminismo do século XVIII precisam de nossa ajuda. Precisamos reescrever seu primeiro artigo simbólico: a primeira propriedade de um indivíduo não é sua força de trabalho, mas sim sua identidade, sua personalidade a qual só ele tem o direto de forjar. Depois vem o resto. Forjar a própria identidade é um profundo ato de rebeldia perante este neo-fascismo que está chocando o ovo da serpente que anseia tomar o Estado e devorar todo aquele que pense algo que a incomode. Se essa serpente crescer, vai impor o estereótipo que deseja para cada um dos que a seguem apaixonadamente. E ninguém poderá dizer coisa alguma, pois a Ordem ditatorial parte da omissão da cidadania para alcançar o silêncio das massas.                                     
                                            
                                    
               
          


quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Êmile Durkheim escreveu o Coringa!(?)





É normal a gente torcer para os protagonistas no cinema. Há uma cumplicidade, uma transferência, uma simbiose entre espectador e o herói estampado na tela. É fácil de nos vermos no lugar do ator e até numa performance mais entusiasmada e mais viril do que a dele. Essa é a mágica do cinema, a capacidade de nos levar pra fora de nosso tempo e espaço para um lugar imaginário onde as emoções são mais intensas e por que não dizer, mais reais. Como?
Bem, gosto muito da metáfora do filósofo Slavov Zizek sobre a icônica cena da trilogia Matrix, quando Morfeu pergunta a Neo se ele quer tomar a pílula vermelha que o fará ver a realidade, ou a azul, que o manterá imerso nas ilusões da ficção da Matrix?
Zizek afirma que a vida não é assim tão binária, por isso temos que nos ater aos aspectos da realidade que encontramos na ficção, ou seja, quanto é verdade e quanto é mentira na ficção e na realidade que consumimos? É no ponto de equilíbrio entre esses extremos que podemos entender no quê nos transformamos. − Podemos usar essa concepção de Zizek para analisarmos o funk carioca, ou mesmo as canções sertanejas com suas letras de gosto duvidoso: o que é verdade e o que é mentira no teor dessas expressões populares?     
No polêmico filme, Coringa, estrelado por Joaquim Phoenix, nos deparamos com os conceitos de Êmile Durkheim, sociólogo francês do início do século XX, que defendia que o indivíduo era fruto da estrutura social. Mais precisamente, a família, a educação, o trabalho, o Estado, a cultura e a religião formam e constroem esses indivíduos que encontramos ao longo da História.  
Resumindo, não há indivíduos que não foram formados por essas estruturas. Até mesmo os que não têm família e estudo são definidos pela sociedade pela seguinte análise: "aquele não teve família, não teve educação, nem teve uma criação religiosa". Até mesmo o suicídio, para Durkheim, era responsabilidade da sociedade.
Voltando ao filme de Joaquim Phoenix, o incômodo da narrativa se dá pelo fato de torcermos por ele apesar de todos os assassinatos que comete: ele mata três jovens executivos sádicos que o agridem no trem, sua mãe que mentiu pra ele a vida toda, seu colega de trabalho e o apresentador de um programa de talk show que o expôs ao constrangimento.
Aliás, como teve seu tratamento psicológico cancelado por cortes de verbas da prefeitura nos programas sociais e mais a suspensão de seus remédios, o filme lança essa sutil dúvida no ar: com a suspensão dos medicamentos, Arthur Fleck, o Coringa, que trabalhava como palhaço, passou enxergar melhor as coisas e a escolher com mais perspicácia o joio e o trigo à sua volta? Em outras palavras: quem merecia viver ou morrer em sua vida?! 
Antes de matar o apresentador do programa de talk show, personagem vivido por Robert De Niro, o Coringa ainda tenta se justificar, ser ouvido, se esforça em dizer o quanto é degradante ser constrangido e humilhado por uma sociedade que expõe os defeitos dos indivíduos considerados improdutivos e descartáveis. (Os que nasceram com defeito de fábrica).
Em outros termos, a narrativa deixa claro que, a salvaguarda do sistema capitalista se camufla na manutenção desse discurso que a sociedade impinge aos que são considerados perdedores: 'não há nada de errado com o sistema, você é quem não se esforça o suficiente, e, por favor, não me venha com esse discurso de vitimização'. O Coringa, então, diante dessa resposta, atira no apresentador e o faz como se atirasse em toda mídia.
Peço licença para um pequeno grifo sobre o que se convêm chamar de discurso de vitimização. Me parece ser o último fôlego da alteridade que, por ironia desse estranho mundo em que vivemos, se manifesta, quase que exclusivamente, em quem está em seu pior momento na vida: aquele de ter de pedir ajuda a um estranho para continuar a sobreviver. E é nessa hora que o tipo humano chamado de homem comum, ou cristão ocidental, diante de um pedido de piedade destila seu sadismo e seu prazer secreto de ver o próximo se lascar ainda mais com sua negativa. Parece haver um anseio pelo espetáculo do desespero encenado pelo pobre perdedor que o procura em nome da misericórdia e da caridade.    
Mas enfim, a cena do assassinato do personagem de Roberto De Niro, transmitida ao vivo, desencadeia o caos em Gothan City. Surge uma rebeldia generalizada que vai muito além da capacidade das forças de seguranças públicas para conter a convulsão. São milhares de Coringas que despertam movidos pela sanha de destruir o mundo que os fez malditos, desprezíveis e improdutivos.
'Durkheim' parece ter razão: é a sociedade quem cria os indivíduos. E quando ela nega, por meio do Estado, o acesso aos recursos financeiros que viabilizam programas sociais, em nome de uma ideologia econômica que preza pelo desmonte desse mesmo Estado, os Coringas emergem. E ao que parece ela se torna vítima de sua própria negação, ao não estender a mão a quem está imerso no desespero.
Sim, Batman é tão criminoso quanto o Coringa. Mas isso é pra um outro texto.        
              
          
                         
      
       

quarta-feira, 15 de maio de 2019

Diálogo sobre o juiz que se tornou ministro





Sócrates se encontra com Coxístenes na Ágora (praça) de Atenas. O jovem está vestido com roupa amarela, panela em punho, o jovem 'cidadão' é todo entusiasmo. O bom e velho Sócrates, sempre com sua serenidade, inicia o diálogo:
Sócrates: Agradeço aos deuses por poder ver um jovem transbordando entusiasmos por nossa política! Creio ser isso, não é, Coxístenes, o motivo de tão alvissareira impostação da voz d'alegria em meio a Ágora de nossa cidade?
Coxístenes: Meu bom e velho amigo, meu mestre maior, não sabes como estou feliz em encontrá-lo, e tens razão sobre minha felicidade. Preciso lhe contar que o juiz que condenou nobres figuras de nossa política pelos crimes de corrupção e peculato será o ministro da justiça de nosso novo governo. Não é maravilhoso?
Sócrates: E quem poderá negar fato tão 'transparente'? Regozijar-me-ei junto a ti nesse momento de esplendor e civismo.
Coxístenes: Oh! Sócrates, fico feliz em ver-te em consonância com nosso advento de justiça!
Sócrates: E como poderia ser diferente, já que nenhuma sociedade prolifera sem a imparcialidade de uma justiça universal.
Coxístenes: Que belas palavras, Sócrates!
Sócrates: Sim, sei disso. E por isso não posso deixar de lhe perguntar antes de sair pelo mundo defendendo tal advento, caso alguém me faça alguma pergunta, e eu, dessa forma, venha a ser pego de surpresa a ficar sem resposta. Posso?
Coxístenes: Claro, Sócrates! Pergunte. Tal preocupação é vital para a edificação da honestidade. Que Zeus ilumine nosso caminho!
Sócrates: Bem, esse juiz, que hoje é ministro, condenou o principal adversário político do atual presidente  antes das  eleições e deixou vazar informações que podem ter influenciado no resultado das mesmas?
Coxístenes: Sim, mas como diz a voz do povo, que é a mesma de deus, foi para um bem maior. Não fosse isso a 'justiça' não chegaria ao Palácio do Planalto.
Sócrates: Entendo. Seria aquela fórmula dita e redita ao quatro ventos ao longo de nossa velha história política, que os fins justificam os meios?!
Coxístenes: Sócrates! Os deuses devem se arrepiar com sua capacidade de entendimento. Oh! mestre! Você tem que nos ajudar a espalhar esse entendimento do novo governo pro mundo!  
Sócrates: Fico feliz de receber tal pedido e irei ao templo ainda hoje para mostrar meu agradecimento aos deuses por poder espalhar tão bela notícia. Mas, voltando à minha dúvida anterior, e se alguém me perguntar sobre o fato do  político condenado, o tal adversário do atual governo, também ter dito que os fins justificaram os meios pelos quais governou?
Coxístenes: Como assim, Sócrates?
Sócrates: Para que pudesse ter minimizado a fome, gerado empregos, criado reservas cambiais e obras de infraestrutura, além de boas relações internacionais, comprou votos na assembléia e cobrou propinas das empreiteiras para membros de seu partido e da oposição e inclusive pro antigo partido do atual presidente, que hoje anda de braços dados com todo esse discurso de 'honestidade'.
Cóxistenes: Sócrates, não fosse você um filósofo grego, eu poderia registrar o que você diz e denunciá-lo. As escolas despedem professores que dizem esse tipo de coisa.
Sócrates: Céus, que bom tê-lo ao meu lado, me sinto protegido, mas ainda tenho coisas a lhe perguntar. Caso contrário, quando for espalhar tal advento, não terei respostas pra tais questionamentos.
Coxístenes: Ainda tem mais, Sócrates?
Sócrates: Sim. Podemos afirmar que o tal juiz, hoje ministro da justiça, é um homem extremamente honesto e que jamais se curvaria ante a qualquer ato de corrupção e injustiça?
Coxístenes: Claro. Eis o motivo de sua nomeação para tão nobre cargo, ser alguém acima de qualquer suspeita.
Sócrates: Digamos que, com certa vista grossa, podemos mitigar o conflito de interesses desencadeado com a condenação do adversário do atual presidente, antes das eleições, executada pelo juiz em questão...
Coxístenes: ...conflito do quê?
Sócrates: ...de interesses. No caso, a condenação imposta pelo juiz beneficiou o então candidato que venceu as eleições, que depois o chamou para ministro. Se o juiz tivesse recusado o convite, 'estaria tudo certo'. Mas é fato que o juiz se beneficiou, politicamente, da própria sentença. Se considerarmos que a justiça é representada por uma mulher de os olhos vendados, ocorreu algo de podre no reino da Dinamarca, não é?
Coxístenes: Mas Sócrates, será que os jornais não perceberam isso, pois ao ouvi-lo aqui e agora penso que era preciso urgência em tal questionamento pelos veículo de informação, que por natureza são obrigados a defender a justiça e a democracia de nossa cidade?! E digo mais, pelo contrário, alguns parecem que até festejam tal nomeação, como o jornal O Mundo, o mais lido na cidade.
Sócrates: Creio que os jornais têm cuidado com o herói que ajudaram a falsificar. Mas juntando isso ao silêncio do próprio juiz enquanto ministro, nos deparamos com um profundo mal estar. Não o sentes?
Coxístenes: Sócrates, como assim silêncio, você me confunde, parece uma mosca que caiu na sopa! Isso sim me dá mal estar!
Sócrates: Perdoe-me. Vou  mais devagar. Podemos dizer que o tal juiz, agora ministro, é o exemplo vivo do mais honesto dos homens?
Coxístenes: Mas disso não tenho dúvidas! Quer dizer, agora tenho algumas, mas diria que a maioria das pessoas pensa que o dito juiz é incorruptível.
Sócrates: Então, segundo o que você diz, ele deveria ter se manifestado quando as notícias sobre as possíveis relações entre a família do atual presidente com os criminosos milicianos repercutiu em todo lugar, certo? Mas é fato que manteve-se em silêncio. E mais, posso afirmar que um homem honesto não se cala ante a tamanha barbárie, não é isso?
Coxístenes: Sócrates, se nos ouvirem nos matam. Acho melhor pararmos.  Podemos continuar outro dia?
Sócrates. Claro, meu amigo. Podemos até mudar de assunto, se isso o incomoda.
Coxístenes: Seria maravilhoso. Do que então conversaríamos?
Sócrates: Que tal sobre a pseudo necessidade da reforma da previdência?         
   
      
      
                  
            
   


quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

A ressurreição dos Reis



Foi logo nas primeiras horas do ano. Terminado o baile, mãos no bolso e cigarro de chocolate no canto da boca, que fui pelas ruas desertas em busca de uma água mineral, seria a primeira de 2019. A gente pensa nessas coisas depois do Revellion: a primeira água, a primeira porta que se abre, a primeira pessoa com quem se fala, etc. Precisava encontrar um boteco aberto. Será, àquela hora, na primeira aurora de 2019? Enquanto houver botecos haverá esperança. E assim encontrei o meu, como um peregrino encontra um oásis num deserto.
Atrás do balcão havia um homem no formato de um ovo, careca, peitudo e barrigudo, que enxugava um copo com um pano de prato amarelado e engordurado, por isso pedi uma lata de cerveja (esqueci da água mineral). Gostei dele só porque me atendeu sem dizer o ‘feliz ano novo’ que tanto eu já tinha ouvido. Ele me deu a lata e eu paguei. Quando me virei para sair, no canto, três caras fantasiados discutiam sobre um pedaço de couro esticado sobre a mesa enferrujada. Turbantes, batas e potes estranhos. Um deles era negro. Olhei pro dono e ele me fez sinal de que não sabia do que se tratava. Achei que era o espólio de algum baile à fantasia, nada de anormal para o tipo de festividade que havia acabado.
Dessa vez eu fui o chato, me aproximei no intuito de ver mais de perto o que eram aquelas criaturas, e para isso usei o ‘feliz ano novo’ como disfarce. Todos olharam pra mim, tinham expressões tristes. Nos potes havia trigo, mirra e incenso. “Céus!”, exclamei alto, afinal estava à frente dos três Reis Magos, e pareciam mais perdidos do que cegos em tiroteio; o couro sobre a mesa era um mapa. O mesmo que usavam há dois mil e dez anos. “São vocês mesmos?” Todos confirmaram. Puxei uma cadeira e pedi outra cerveja ao homem ovo. Voltei para o trio e resolvi perguntar, “Qual é o problema, por que estão tristes?”
A resposta foi simples, há muito não encontravam o Menino Jesus. Quando chegavam, dia 06/01, dia de reis, os presépios já tinham sido desmontados. Quando encontravam um ou outro ainda em ato, era muito mais pela preguiça do proprietário do que desejo de espera pelos reis magos. Além disso, o menino também se mostrava impaciente. Não queria saber de trigo, mirra e incenso. Queria vídeo-games, IPODs, celular, computador, um revólver taurus e/ou passagens para Disneylândia e lugares afins. Ou seja, eram obsoletos.
Gaspar deu um murro na mesa e disse, “É culpa do Papai Noel, aquele...”. De certa forma ele tinha razão, com o patrocínio de refrigerantes e apoio logístico de Hollywood, Papai Noel havia se tornado na grande estrela do Natal: filmes, desenhos, comerciais e logomarcas estimulavam muito mais o consumo do que o nascimento de um menino numa manjedoura, cercado por animais e presenteado, dias depois de seu nascimento, por três reis magos com presentes simbólicos.
Baltazar chorava, lembrou-se de São Francisco, “...e os pobres animais do presépio, todos viraram churrasco!”. Era fato: bois, cavalos, galinhas, ovelhas tornaram-se sinônimos de carne assada na brasa. Ninguém mais se lembrava deles no Natal, haviam aquecido o menino com seus corpos quentes, mas ninguém se lembrava mais deles, nem as crianças. Era trágico, Papai Noel, com certeza, era um funcionário da CIA, e sua função era fazer com que os homens do mundo pensassem como os norte-americanos; maior sucesso teria a tarefa se ela começasse com as crianças. Natal é consumo.
Com as primeiras lágrimas nos olhos de 2011, resolvi comprar briga com Papai Noel em defesa dos três reis magos. Pensei numa guerra do tipo X-Man, mas os três sábios me dissuadiram. ‘Paz na Terra aos Homens de Boa Vontade’ era o princípio básico do Natal, e não uma guerra. Eles tinham razão, então pedi outra cerveja ao homem ovo que deixou claro que estava ao nosso lado na futura cruzada contra o homem refrigerante que se chamava Noel.
Eu não agüentei e desabafei, “...vocês ainda andam de camelo e o Noel vai de helicóptero”. A concorrência era desleal. Mas a esperança não morre fácil. O homem ovo trouxe seu filho pela mão, ele morava nos fundos do boteco, além do balcão ficava não só a cozinha do bar, mas também sua casa.
Belchior sorriu pro menino e o colocou sobre o joelho. Do trigo dourado, (que muitos pensam ser o ouro, inclusive teólogos), emanou uma luz, ela pairava sobre a mesa. O menino sorria, eu e o homem ovo ficamos no lugar dos animais, de nós exalava calor. Da mirra e do incenso vieram aroma, limpeza, tudo ficou como a água pura da montanha. A singela mulher do homem ovo saiu detrás do balcão, veio até a mesa, beijou as mãos dos magos, tomou o filho de volta e os reis entregaram a ela os presentes.
Os reis se curvaram e saíram, o boteco parecia novo. Fui até a rua e me deparei com uma neblina nada comum nessa época, então vi a silhueta dos Reis Magos em movimento e até agora não consegui me esquecer do barulho dos pés dos camelos. Voltei pra mesa, dessa vez o homem ovo se sentou comigo, tinha os olhos úmidos. Encheu dois copos de cerveja e disse, “...é por conta da casa”. Agradeci, bebi e perguntei, antes de sair:
- Obrigado, senhor...
-...José.