sábado, 20 de setembro de 2014

Contos absurdos: o céu através da garrafa de vinho



        Bem-te-vi: Pitangus sulphuratus

Havia mais um pássaro perdido no chão. Pensei que se tratava só de um filhote de bem-te-vi, mas eram dois, solitários, lutando pela vida. Eu sabia que não iriam permanecer vivos, que não conseguiram voar! A mãe e o pai alimentaram os filhos até onde foi possível. Eu fiz o que podia, deixei de frequentar o quintal, fiquei longe da imensa árvore, a Mangifera indica, que já anunciou suas frutas de verão, a manga, a mais sexual de todas, onde se lambuza até a alma, sei que ela orou pelos filhotes e também nada pode fazer para salvar os dois. Desfolhando-se toda, a Mangifera salpicou o chão de confetes triangulares e o vento zumbiu macio em sua copa. Oh! Sidarta, a morte foi o melhor para os pássaros? Sim, a existência foi benevolente! Quem lhe disse isso? Darwin.
E foi dessa forma que pude entender que a consciência não mente, ao contrário, sabe que tem de dizer coisas ao inconsciente. E este sim, de olhos bem fechados, permanece sem saber da verdade. É que somos primatas dançando na chuva, enquanto o sol atravessa o céu e sem se importar com quem se aquece em sua força vital, advinda das explosões atômicas de suas entranhas. Quanta carne o sol já devorou? O quanto ainda poderemos nos devorar, até que o equilíbrio se desfaça e eu já não consiga mais controlar o poder de esquecer? Sidarta, o que devo fazer? Entender que as relações efêmeras têm sabores de eternidade! Tal como o desejo que tenho de que os dois bem-te-vis tivessem sobrevivido? Sim, como querer dançar aquela canção que você nunca mais ouviu porque está num vinil. Ao tocá-la, nos poucos minutos, tudo será eterno? Sim, exatamente! Sartre já disse isso! Mas ele jamais poderia saber que você se apaixonaria pelo sal da vida?
A chuva lavou a tarde. O céu transmutou-se na direção de uma escala cromática do cinza plúmbeo e eu o olhei através da garrafa de vinho. É o vinho que me fará viver mais, para que possa esperar o dia em que nada terei de fazer, a não ser, ser seu eu mesmo, e sentar-me-ei num banco sob as árvores e pensarei nas vezes que sonhei ter dançado abraçado a ela, enquanto Beck cantava que nada se poderia fazer contra as forças da Terra, e que o diabo sempre nos seguiu de perto, ansioso pra alcançar seu quinhão. Então ele saberá que o mantive longe graças às palavras de Singer.
Olhei a imagem mediterrânea do filme sobre a ilha do esquecimento. O lugar de onde eu vim. Sempre que o vejo, sinto que estou impregnado daquela paisagem, como se não pudesse estar em outro lugar, senão naquele chão. Fui um gladiador, um césar, um senador, alguém da plebe, o leão que devorava cristãos, os próprios cristãos estraçalhados na Roma carnívora. Fui também o antes, o Odisseu, a Tróia, um dos filósofos que negaram a deus ao declarar amor a Terra; também sei das prostitutas do caís de Atenas. E é esta parte que faz você mais gostar de mim. Mas devo dizer que Sidarta não concorda. Por que, meu príncipe? Quando um homem puder sentir o amor, tal como uma mulher, será então um deus! E eu sou apenas...?! ...apenas uma lata de lixo ocidental. 
Cat Stevens desenhou uma lata de lixo na capa de um de seus LPs. Depois foi internado. Precisava se desintoxicar. Nunca mais foi o mesmo. O que faremos, Beck? Tomaremos vinho como desejou Epicuro. Ei, Sidarta, está servido?

aos poucos, mas maravilhosos leitores desse blog, agradeço e peço desculpas pela fixação com os mesmos temas: Sidarta, Beck, o amor, a ilusão e o destino que, não existindo, é sempre presente. É que não consigo parar de ouvir: nobody's fault but my own, do bom e velho Beck, que fala da existência, seu sentido, do diabo em cada um de nós e que não é culpa de ninguém. O que seria de nós sem o eu-lírico? Abraços!     

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Contos absurdos: O doce canto da liberdade

                     


O rei de uma terra distante havia conseguido a mão de uma bela princesa. O casamento fora festivo, mas os olhos da noiva, agora que se tornara uma rainha, eram tristes. Foi levada ao seu novo reino por um cortejo dourado. O castelo de seu esposo era cercado por florestas e todo o vilarejo se ajoelhou para a passagem dos nobres. Mas à noite, a rainha disse que não poderia se deitar com o rei, tinha os nervos abalados, precisava adormecer profundamente. Dessa forma, necessitava urgentemente de silêncio. É que sem descanso, não poderia desposá-lo.
Noutro dia, feito um cavalo puro sangue na ponta dos cascos, o rei ordenou que todo o castelo ficasse em silêncio, a rainha precisava dormir para que ele pudesse ter sua lua-de-mel. Fez-se um silêncio nas entranhas de pedra. Mas a rainha disse que só no castelo o silêncio era pouco, os pássaros na floresta não a deixavam dormir, principalmente à noite.
Assim foi dada outra ordem: que todos os pássaros fossem mortos, caçados, vendidos, exilados, mandados para terras distantes, o sono da rainha não poderia ser atrapalhado. Mas ainda não foi o suficiente, a rainha disse que o barulho do vilarejo, agora com tanto silêncio no castelo e na floresta, produzia um ‘zum-zum-zum’ forte por demais que não a deixava dormir. O rei era implacável e não desistia.
"Um guarda em cada porta, se preciso for, para manter o silêncio!', ordenou o rei para que a princesa pudesse dormir e ele, dessa forma, pudesse vir a amá-la. O rei era um homem forte, seu peito era peludo, sua barriga pronunciava uma farta alimentação de carne. Seu hálito misturava faisão, vinho, cerveja e pimenta. Seu pai fora um rei viking. Por isso, talvez, a princesa, segundo diziam as mulheres da corte, estava retardando por demais as núpcias.
Em segredo a rainha sentia-se enojada toda vez que via o rei. Queria algo mais carinhoso, mais singelo, que lhe tocasse a pele como o vento da manhã, como a delicadeza da água da floresta, igual à maciez dos lençóis de seda.
'Controlado' o vilarejo, o rei perguntou se agora havia silêncio o suficiente no reino para que ela pudesse se deitar, finalmente, com ele. Ainda não! Agora era o vento nas folhagens que produziam barulho. Parecia um chocalho gigante, ela precisava de silêncio senão não poderia entregar-lhe o corpo branco como o leite, os cabelos claros como o trigo, os seios duros e pontudos e apontados pro céu. Só de imaginar o rei entrou em ebulição. Mandou cortar as árvores ao redor do castelo, queria uma clareira de quilômetros para que a rainha não ouvisse mais o barulho do vento nas folhagens.
Após as árvores cortadas, o silêncio era tão profundo que muitos habitantes do reino entraram em depressão. Alguns cometeram suicídio. O rei, orgulhoso de sua obra, postou-se diante de sua rainha e queria saber se agora poderiam se amar. A rainha disse que quase tudo estava bom, mas ela ainda ouvia o coração dele ecoando dentro do peito. Aquele Tum! Tum! Tum! era sufocante. O rei deveria procurar um feiticeiro, um que a rainha trouxera de seu antigo reino, e que fora alojado nos porões do castelo. Ele conhecia uma poção que fazia o coração bater sem fazer barulho.
O rei desceu as escadas com toda a sofreguidão do mundo. Deu ordens ao feiticeiro que lhe desse a poção. Nem quis ouvir sobre o fato de que nunca tinha sido experimentada. Que aquela fosse a primeira e não se falava mais no assunto. Com o frasco nas mãos, o rei subiu as escadas e de joelhos, diante de sua rainha, tomou a poção. Depois se deitou na cama e indicou o peito, o coração agora não fazia mais barulho.
A rainha, agora sim, disse que havia silêncio o suficiente. Só então o rei entendeu que estava prestes a morrer. Sentiu uma dor extrema no peito e fechou os olhos. A última imagem que levou do mundo foi a do rosto de sua rainha. Ela estava sorrindo, rodeada por um silêncio profundo. 
Com o rei morto, a rainha desceu as escadas, chegou até as baias e pegou o melhor cavalo. Cruzou todo reino de seu falecido esposo e, depois de dias cavalgando solitariamente, parou diante de uma cachoeira no meio de uma distante floresta. Um trovador a esperava com o violão em mãos. Ela jogou fora a coroa que tinha e ele cantou pra ela uma canção antiga. Ficaram olhando as estrelas, sentados nas pedras, e em meio ao canto dos pássaros noturnos. Até que de repente, ele a beijou nos lábios e a tocou sob o vestido. Havia uma leve música no mundo todo. Podia-se ouvir os corações dos dois. Acelerados e na mesma frequência.

sábado, 13 de setembro de 2014

Contos absurdos: o gosto irremediável do fim



À noite fui assombrado por maus pensamentos. O sono parecia uma película inacabada que não saía do lugar. No fundo da Terra o magma mantinha sua incandescência e o sol, distante, soprava sua radiação na clara noite lunar. Entre o magma e o sol, dois calores profundos, eu, sobre a superfície do mundo, com o coração frio, atinei no espanto. As únicas coisas que me acalmaram foram as equalizações de Beck, todas feitas em Saturno, diria alguém mais sábio. E como um verme sobre a maça, caminhei de coração parado. A lua era só um espelho que refletia a luz do sol.
Os animais dormiam e me lembrei que vivo cercado pela idiotice acadêmica, pelo princípio do não pensar, do sentir-se num escafandro de escuridão. Melhor se virar e seguir em frente nesse mundo circular em que eu sempre volto ao mesmo ponto e não posso desistir dele. Olhei no espelho e vi que meus lóbulos cerebrais funcionavam como engrenagens, minhas mãos calçavam luvas metálicas para construir a patologia certificada do mundo; minhas palavras eram um gráfico cartesiano medonho cheio de uma perspectiva que não era a minha.
Dançar sozinho à noite, longe dos olhos do mundo, procurando no inefável a solução que não existe, é o que se pode fazer quando o coração é frio. A ausência de deus é onisciente, queria lhe dizer coisas, mas ele não sabe nem mesmo usar as libras; a árvore deixou cair uma folha, queria me dizer algo; um ser tão perecível quanto eu. Pedi-lhe perdão por tê-la ignorado e pensado num suposto ser perfeito que não é, e que vive se escondendo na luz e/ou na escuridão profunda de minha mente.
Sinto o gosto irremediável do fim e devo me curvar a ele, como faria um balseiro, ou mesmo Buda, quando entende que nada se pode fazer sobre o mundo, porque de tão transitório que é, se torna essencialmente uma vertigem num abraço de eternidade nos acordes do meu violão. Eis meu espelho, minhas cordas estrelares, a mutação do nada que vai até o mais profundo dos vazios. Penso nos retratos dos filhos em preto e branco nalgum lugar do parque de diversões, onde no céu não havia cometa algum. Minha boca ficou seca como o Mojave, muito além do gosto do algodão doce.
Me sentei às margens do rio e pedi tigelas de arroz às pessoas do mundo, àquelas mergulhadas em afazeres descartáveis. Pensei em todas as moedas que neguei aos miseráveis da Terra. Uma dor cortou minhas vísceras. Eu tinha negado coisas a mim mesmo. Me deparei com homens vestidos de ternos e que só falavam de negócios e religiões, de apocalipses e julgamentos e de quanto o diabo devoraria meus ossos. Mas não sou um espírito?
A carne passa, o dirigível passa, o sorriso da moça passa, amarela e se torna uma passagem pra lugar nenhum. Ah! O destino que não existe, mas que passa a ocupar o sentido das trilhas que não controlamos, como ao olhar o jardim e contar as folhas e dizer que aquela, especificamente aquela, estava fadada a ser o número 999. E não poderia ser de outra forma, porque estava escrito nas estrelas, até em algumas que nem mais existem.
Vi uma velha mulher pegar uma folha seca no chão. O pato navegava livre pelo lago circular e limitado de tempo e espaço. As ondas na água eram o momento em que tempo e espaço se acasalavam diante de meus olhos que, segundo a segundo, se desligavam do mundo. Eis só mais uma forma de sentir o fim, o irremediável fim que está por vir nas ondas digitais do mundo ao qual não pertenço. Quanto menos me entrego ao desejos estoicos da vida, mais vivo me sinto e mais vezes danço com a morte de rosto colado, enquanto Beck canta que não há porque sentir medo, as histórias humanas não significam nada. Até menos um pouco. É que essa noite fui assombrado por maus pensamentos e por isso estou tão otimista. 
Sob um céu doentiamente azul do dia seguinte, a música rolou suave. O vento ressecou as frestas da pele, as árvores polinizavam livremente e a água se preparava para cair. Ao longe não via anjos e nem demônios voando livres no céu. Fluíam no vento alto com tanta arte e sem nenhum compromisso com a realidade, os abutres, os urubus, as rapinas da podridão, como se dissessem: Morra em paz, estamos aqui para nadificar você.

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Contos absurdos: A festa




A festa já havia alcançado aquele limiar em que o próximo passo era o trágico. Em algum lugar uma torneira inundava o chão, as pessoas já não dançavam mais, apenas curtiam os pés estalando na água, papéis desmanchavam em papas, alguém iniciara uma guerra de tomates e o pequeno apartamento ia sendo melecado junto a um volume estridente de risadas. Enfim, era a hora de partir.
Jack desceu escorado pelas paredes, a escada não era assim ‘tão difícil’. Manteve o cigarro na boca, 'entendia' que enquanto pudesse retê-lo entre lábios, logo teria condições de andar 'normalmente'. Chegou a questionar se estava aceso ou apagado, mas saber isso naquele momento, não lhe traria benefício racional nenhum. Pessoas subiam e desciam, parecia o metrô, mas aonde iriam àquela hora?
Milagrosamente chegou ao patamar. Agora só faltava um andar. Viu uma senhora com lenço cobrindo bobs gigantescos na cabeça. Ela tinha um vestido estampado, parecia a bandeira do Havaí. Como seria a bandeira do Havaí? Melhor acenar. Olhou pra ela e até achou que se estivesse um pouco 'mais alto', a coroa daria um bom caldo. Mas ela bateu a porta junto de um sonoro palavrão. Só depois ele entendeu que a festa ocorria sobre o apartamento dela.
Finalmente, no térreo, alcançou a porta da rua. Ventava muito, pelo menos parecia. Foi até a esquina e sentou-se num ponto de ônibus. Conversou com a lata de lixo. Falou sobre Victor Hugo, Emile Zola, Fellini, Celine e Marcel Duchamp. Não sabia nada sobre Duchamp, mas a lata de lixo não se importou. Desistiu da conversa quando a lata achou que poderia contar sua vida, suas desilusões, seu renascimento numa igreja qualquer onde falavam de Abraão, Moisés e Cristo.
Entrou no primeiro ônibus que parou. Não importava o destino. Sentou-se ao lado de uma mulher, quase da sua idade. Ela virou o rosto. O ônibus partiu. Ele colocou a mão no meio das pernas dela, na altura dos joelhos. Um tapa estalou em sua cara. Ele se assustou: Ei, não acha que está na hora de discutirmos nossa relação? Vagabundo, nunca te vi na vida? Estamos só nós dois nesse quarto de hotel, QUALÉ?! Gambá fedorento! Ei, Linda, vamos nos beijar...igual no colegial? Meu nome é Vilma! Amore mio!  
Os outros passageiros ouviram mais um tapa. Antes que o motorista dissesse alguma coisa, pediram para que ela mudasse de lugar. Ela passou por ele pisando em seus pés na busca por outro banco. As pessoas riam: Ei, Linda, isso é um divórcio? Se dependesse de mim seria um velório? Hã? O seu velório! Ei, quanta violência!
Jack nunca soube dizer por que desceu num ponto da praia. O sol estava nascendo. Resolveu caminhar na areia. Viu pessoas correndo, outras meditando, outras namorando e alguns bêbados dormindo ao léu. Resolveu dormir também. Deitou-se ao lado de seus semelhantes e ouviu rumores, burburinhos. ‘Monólogos debates’ que ainda perduravam. Então confessou: Moçada, nunca soube que em minha cidade tivesse praia! 

terça-feira, 9 de setembro de 2014

Contos absurdos: O quadro



O marchand da galeria Degas estava embalando a última aquisição de Amadeo, um freguês assíduo, que observava as outras obras com ar alvissareiro. Sua bengala girava feliz e cortava o ar com elegância. Mas ninguém imaginaria que ele se depararia, assim, de repente, com um quadro de uma mulher nua e em tamanho natural. Nada de anormal não fosse a mulher retratada, sua esposa, nua em pelo. A palavra adultério tomou-lhe a alma de assalto.
Cada vez que olhava o quadro, mais escuro se tornava o mundo. Não era só a precisão do rosto, mas até a marca no seio esquerdo era a mesma. O corpo da esposa exposto em tamanho natural, em plena galeria, era uma punhalada. Sua intimidade estava aos olhos de todos. Um escárnio. Foi falar com o marchand, aquilo tinha que ter uma explicação: Adamo, quem é o autor daquele corpo nu em tamanho natural, ali naquela sala? Oh! Sr. Amadeo, o senhor não perde o faro, é belíssimo, mas é um anônimo, imagina, em pleno século 21!
Amadeo se controlou, mas acabou por oferecer uma boa gorjeta ao marchand em troca de informação: A única coisa que sei é o nome do antigo proprietário, Adorno, posso lhe dar o endereço se quiser? Sim, Adamo, eu preciso, quero saber sobre o pintor.
No carro Amadeo deu o endereço ao motorista. Era numa cidade nos arredores. Isso facilitaria sua busca. O antigo proprietário poderia lhe dar informações mais precisas. A ideia de que sua esposa, a bela Lisa, fosse amante de um pintor o consumia por dentro. Não havia outro motivo para pousar nua, a não ser num romance. Pensava na honra, na raiva e num revólver.
Montalbán tinha poucos habitantes. Em poucos minutos o carro de Amadeo parou diante do endereço indicado. Era uma bela casa com uma escada que Amadeo subiu com dificuldade. Bateu na porta da mansão que logo foi aberta. Parecia sua própria casa.
O homem que apareceu se apresentou como advogado: Meu nome é Millinton, em que posso lhe ser útil? Gostaria de falar com o proprietário da casa. Isso não vai ser possível, ele morreu. Como? Bem, isso é difícil de dizer a um estranho, sou do banco, toda a propriedade foi confiscada, ao que parece, estamos diante de um crime. Um crime? A esposa está presa, acusada de assassinar o marido para receber o seguro. Ela forjou um acidente? Não, envenenamento. Que horror! Descobrimos que ela é a amante de um pintor, pousou nua para ele. É por isso vim até aqui, vi na Galeria Degas parte do acervo do dono da casa, queria saber onde havia conseguido suas obras. Estamos vendendo os bens da casa, a hipoteca era grande, sabe como é, negócios são negócios! Mas diga-me, quando ocorreu o crime? Um mês, mais ou menos.
O Advogado indicou um salão onde havia mais quadros, queria ser gentil, mas foi cumprir outras tarefas. Amadeo tranquilizara-se. Sua Lisa estava em casa, não na cadeia. Deveria ser uma coincidência, ou na pior das hipóteses, Lisa tinha uma irmã gêmea. Intimamente começou a rir da situação, mas isso durou pouco. Acima da lareira estava o quadro de Adorno, uma cópia fiel do próprio Amadeo. Sentiu uma leve vertigem. Estava diante da própria imagem, a diferença era que não tinha a barba. Isso talvez tivesse impedido o advogado de o acusar de ser Adorno, um fantasma trapaceiro. Era melhor sair dali logo.
No trajeto de volta ia pensando na história toda. Uma sósia da esposa que era amante de um pintor e que matara um sósia seu para ganhar uma bolada do seguro. A vertigem continuava. Resolveu ligar para casa, a voz Lisa, com certeza, o acalmaria. Mas quem atendeu foi o mordomo: Lisa não está, senhor! Mas aonde ela foi? Disse que iria prestigiar a exposição de um jovem e talentoso pintor que conheceu há pouco. Ok, Max, obrigado. 
Amadeo sentia algo de trágico sobre o corpo. Chegou à sua casa e manteve-se em silêncio. Passou a maior parte do tempo pensando no que iria fazer. Resolveu esperar Lisa no bar da mansão. Ela chegou só ao fim da tarde. Sorria muito e anunciou ao marido que havia descoberto um talento das artes plásticas. Amadeo mostrou-se interessado, sorriu, indicou seu lugar à mesa e disse ao mordomo: Max, traga aquele chá especial para minha esposa.     

sábado, 6 de setembro de 2014

Contos absurdos: O Vilarejo




Edgar, ainda com o gosto do pão da manhã na boca, atinou para aquele fato quase que metafísico, é que em seu vilarejo, Havel, entre a montanha e o mar, nunca ninguém havia sido assassinado. Um lugar esquecido pelo Diabo. Mal limpou a boca e saiu aflito em direção à rua, sua xícara permaneceu exalando a fumaça provinda do calor do leite.
Na barbearia relatou a Ferdinand sua descoberta. Com a navalha na mão, o barbeiro viu a luz elétrica refletida no fio da lâmina e pensou em silêncio, como se ainda processasse aquela informação trazida ainda sob os primeiros hálitos da manhã, “...me faltou só um pouco de coragem!”. Mas em seguida manteve a postura de assombro com a novidade: Então, Edgar, quer dizer que não há entre nós um assassino? Exato, e isso está me causando um certo estranhamento, nós nunca nos matamos! Sinceramente não sei o que pensar e ainda mais pela manhã! Bem, nesse caso, deixe-me ir, vou procurar padre Orson. Que seja, até porque lá vem o meu primeiro freguês.
Na igreja, padre Orson ouviu cabisbaixo. Talvez rememorizasse confissões, procurasse limites, ou quem sabe também fora mordido pela mesma intrigante constatação de Edgar, a de que Havel era uma terra sem assassinos. Acabaram caminhando até ao cemitério atrás da igreja. Diante das lápides, viram os nomes comuns de pessoas comuns, que morreram corroídas pelo tempo e muito pouco se lembrava delas: Mas padre, não é estranho que estejam mortos sem deixar lembranças significativas?! Você quer dizer que eles simplesmente passaram pela vida?! Sim! Mas isso não seria bom? Creio que sim! Então por que isso o está incomodando? Não sei. Posso dizer que agora passou a me incomodar também.
Intrigado e sem respostas, Edgar se despediu do padre e seguiu até o jornal do vilarejo. Oscar, o editor, lhe deu o catálogo com todas as primeiras páginas do jornal organizadas em ordem cronológica. Não havia uma manchete que burlasse a rotina dos fatos. O mais grave fora um acidente com um barco num inverno há alguns anos. Oscar coçou a cabeça, mergulhou na mesma frequência sombria em que Edgar se encontrava e disse: Nunca tinha pensado nisso, nenhum de nós é um assassino, ou tem na família alguém do tipo. Não acha isso estranho, Oscar? Creio que sim, mas acho que muitos diriam que isso é sinônimo de felicidade. Então por que saber disso me joga numa agonia asfixiante? Não sei dizer.
Sete dias depois, à noite, no encontro semanal do conselho de Havel, todos se olhavam assustados, entre eles, afinal, não havia um assassino, ou mesmo um ancestral criminoso. A dúvida de Edgar correra o mundo. Por mais que quisessem discutir assuntos de relevância administrativa, não conseguiam esquecer os assassinatos que nunca ocorreram. Por que eram tão diferentes?
À porta do salão do conselho, ao fim da sessão, Edgar conversou com médico da cidade, o Dr. Isaac: Não sei se isso é um sintoma, talvez seja só obra do acaso, somada a uma baixa probabilidade de ocorrências de conflitos! Ou melhor, doutor, que dezenas, centenas de assassinatos ocorreram simbolicamente, psicologicamente, num ambiente privado e sigiloso da mente! Provavelmente isso tenha acontecido. Então o senhor e o padre Orson sabem quem são os nossos assassinos virtuais? Isso eu não posso afirmar, não sou um psicólogo e mesmo que fosse não poderia dizê-lo.
Edgar voltou pra sua casa, naquela noite, com um profundo sentimento de frustração. Setes dias haviam se passado, tempo suficiente para se criar o universo e descansar a posteriori, mas ele ainda não tinha a resposta para a ausência histórica de assassinatos. Em sua varanda, na cadeira de balaço, ficou olhando o mar; sua casa era afastada. Adormeceu e não ouviu os passos no piso de madeira. Despertou de um sonho onde era uma criança com o metal gelado da faca entrando em sua garganta. Uma mão pesada tapou-lhe a boca e seu grito ficou contido enquanto morria com o sangue escorrendo intensamente. 
O carteiro o encontrou pela manhã e chamou o delegado; logo uma multidão se postou diante de sua casa. No seu velório não disseram nada. O padre mal fez a benção. Em sua lápide foi escrito somente seu nome, a data de nascimento e a da morte. E o jornal local não publicou nada, nem mesmo no obituário..

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Sidarta, Beck e a cebola

A copa do imenso salgueiro balançava lentamente às margens do rio, eu estava em sincronia com a leve brisa vesperal e uma profunda paz, aliada à força do tempo, brotou da garganta; foi exatamente desse lugar que eu disse, Beck, aquele ao pé da árvore é Sidarta? Posso lhe dizer que não há outro sob a árvore! Vou me ajoelhar diante dele e pedir perdão. Acredito que ele não o perdoará. Por quê? Ele é o ‘único deus’ que não pode perdoar, porque não vê pecado em ninguém. O que isso quer dizer? Que só você pode entender que não há culpa nenhuma, pra qualquer lugar que você for, o que você é, estará sempre no seu coração. Quer dizer que mesmo que ele me perdoe de nada adiantará? Sim, só um farsante perdoa, já um deus verdadeiro faz você olhar pra dentro de si mesmo para que você entenda o que se passa. Ou o que não aconteceu, não existiu, não foi real! Isso, você é inteligente, mesmo quando está triste.
Em meio a um movimento de carros com suas luzes estressadas, com o metal subindo aos céus, frutos de projetos nascidos das cabeças dos homens, impregnando o mundo de um sentido desprovido de ternura e conforto pra alma, me sinto letárgico, um observador de um filme, mas sou eu quem vai em câmera lenta, na contramão do mundo, a música nos ouvidos, ‘desolhando’ tudo, ansiando pelo reverso da memória, pela benção do esquecimento, braços abertos à espera do desconhecer, desejando uma dose de amor próprio que cicatrize a carne esfolada por dentro. O metal que dilacera lentamente as cavidades da costela, tal como se um deus egoísta quisesse meus ossos para criar outro fantoche, é perene, e eu preciso entender que Sidarta nada poderá fazer, mas é a companhia dele a única possível pra se olhar o mundo.
Beck, não sabia que você gostava de narguilê!? Cóf, cóf, ...é um hábito árabe, turco! Sidarta é da índia! Que diferença isso faz? Ele pode não gostar! Isso é o que menos importa, já a árvore e o rio são imprescindíveis para que você se entenda! Beck, não seria melhor me desentender? Esquecer é uma das maiores artes de mundo, digo porque muitos confundem esquecimento com confinamento das memórias no subsolo da mente. E como fazemos para tudo virar pó? A maioria dirá que o tempo é a única solução para nos curarmos de coisas que surgiram assim, sem explicação, mas logo em seguida, e esse é o problema da humanidade, surge o mesmo desejo de novo, só que com outro cenário, outros personagens, mas sendo a mesma história. É disso que Sidarta quer nos libertar? Se ele vier a querer algo, ele então não será ele, pois haverá um desejo. Entendi, Beck, ele só indica o caminho, desde que você o queira trilhar.
Sidarta se levantou do pé da árvore e me indicou o outro lado do rio. Gesticulou amavelmente a cabeça com a mesma beleza de um acorde extraído de uma cítara e foi na direção oposta. Ei, Beck, aonde ele vai? Pô, um deus que passa um dia inteiro meditando tem que descansar! Beck, ele não é um deus! Que diferença isso faz! Deus ou homem, eis a questão?! O primeiro vive eternamente em agonia porque tudo não foi como ele planejou, o outro sonha o infinito em desejos contínuos, mas morre antes de saciá-los e acaba num túmulo, e talvez pra sempre! Então melhor ser um homem!
Chamamos um balseiro e ele nos atravessou. O céu era vermelho, o sol não nos esperaria por mais muito tempo. Pisamos na outra margem e uma imensa cebola nos aguardava sobre uma mesa com velas, incensos e flores. Beck, o que faremos? Eu vou me sentar e tocar nobody’s fault but my own pra você. E eu? Acho que deve tirar cada camada da cebola e ver o que há lá dentro, no âmago. Minhas mãos vão ficar fedendo cebola! Pra isso existe o rio. Não tinha pensado nisso!
Enquanto Beck cantava, fui tirando camada a camada da cebola e em cada uma delas havia um texto longo por demais e que eu não conseguia ler. Meu desejo de chegar ao centro de tudo era maior que minha capacidade de processar. Então me deparei, finalmente, com um busto em que o rosto era o meu. Pra minha alegria, era feito de manteiga e começou a derreter assim que olhei para ele. Eu não poderia orar pra mim mesmo, nem agradecer, nem fazer promessas, nem justificar nada, eu apenas existia enquanto rumava pra inexistência. Beck, tudo segue para seu fim e eu não posso fazer nada, é isso o que diz a estátua dentro da cebola?! Você pode, sim, fazer algo! O quê? Chamar o balseiro para que possamos voltar ao mesmo lugar em que estávamos e ver como tudo sempre fica novo. 



  No outro lado do rio me sentei no lugar de Sidarta. Sei que foi muita arrogância. Ei, Beck, vamos tomar um vinho enquanto você canta?! Assim foi feito e então disse a ele: o deus que há em mim saúda o vinho que começa a circular em você! Sim, agradeço, mas lembre-se: não há culpa nenhuma, porque nada de errado foi feito, isso tudo é ‘só a existência’ humana!

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Mississippi Drake Blues - Parker Walk




Bem, é simples, misturamos Junior Parker e Gorilaz e mais o profundo estranhamento de se caminhar sobre a lua, sobretudo para quem já morreu...


a letra é um haicai aumentado e  improvisado:

   ' I walk on the moon, baby...
     
goodbye broadway,
     i'll go underground!   

     don't let me down
     tomorow never knows!'

Dedicada a Tom Vital, Alexandre Gomes, Alício e outras pessoas vitais para os nossos devaneios!