sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

As primeiras horas do dia - bonus track IV, final cut

O sol estava a pino. Eu estava sentado no topo da escada, de frente pra rua e pro mundo. O carro parou. Meu pai desceu dele com um livro nas mãos. Eu tinha uma prova no outro dia e ainda não tinha começado a ler a história, porque não havia pedido o livro que fora marcado há mais de um mês. O Rei do rio de ouro, era esse o nome.
Comecei a ler ali mesmo. Meu pai o entregou ao passar por mim em passos operários, era um mecânico. Depois eu ouvia o barulho de seus talhares no prato do almoço lá na cozinha, enquanto eu lia os primeiros parágrafos. A história do livro acontecia em lugar nenhum. Um menino que tinha dois irmãos maiores que eram maus. O Rei do rio de ouro era um duende que recebia, ao final da história, um pedaço de carne de um assado que o menino vigiava e não deveria comer. O resto eu não me lembro. Entendi que o menino fora bom ao dar sua parte ao pobre Rei do rio de ouro, mesmo ficando sem nada para comer. Os dois irmãos viraram pedra, e o menino foi premiado ao final.
Não tirei nota boa nessa prova. Senti que meu esforço fora em vão. Um desperdício; eu já estava na 5ª série ginasial. Mas posso dizer que a primeira história que me tocou profundamente foi sobre a floresta do sono, num livro de português que eu usara na 3ª série do primário. Havia um desenho de um rio cercado de árvores e os animais dormiam às margens e nos galhos. Ainda me lembro da figura do hipopótamo, com seus olhos fechados, e com a metade do corpo pra fora d’água. Todo animal que por ali chegava, adormecia. Eu adorava o enredo.   
Depois eu fui ler Os patins de prata, uma história holandesa onde um pai criava, com dificuldades, um casal de filhos, Hannah e Hans, se não me engano, desde a morte da mãe. Era uma família pobre e Hans patinava como um capeta. Ele ainda salvou a cidade de uma inundação, porque havia enfiado o dedo num buraco da parede do dique que circundava a cidade. Passou a noite inteira evitando a tragédia, venceu o frio, o medo e se tornou um exemplo. Depois venceu a competição de patins e levou o prêmio, que eram os patins de prata.
Mais tarde, no meio do ginásio, li um livro que se chamava, Nas terras do rei café. Uma viagem a um mundo paralelo que depois, ao final, era definida apenas como um sonho. Gostei muito desse livro, talvez pela fuga, pela aventura a um universo perdido em meio a uma mata. Com certeza, o autor, que não me lembro o nome, havia se inspirado em Alice no país das maravilhas, mesclando pitadas de Monteiro Lobato. – Do bom e velho Lobato gostei de ler O saci, onde perdi o medo do escuro.
Alabardas, Alabardas! O último livro que ainda não li, é um texto inacabado do mestre Saramago. Comprei o livro esses dias, tem a frase parada no tempo, incompleta, no alto de uma página, a última que ele escreveu. Depois, imagino, sua vida foi uma sequência de fatos que ocorreram em horas, talvez num ou dois dias e a morte veio lhe tocar nos ombros. Então se abriu diante de seus olhos os portais da floresta do sono. Tornou-se uma pedra, pra sempre, no próprio quintal, em sua terra natal do exílio, a própria literatura portuguesa plantada num solo vulcânico.
Alabardas, Alabardas! Nas terras do rei do café.


                  

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

As primeiras horas do dia - bonus track III

De repente aparecemos no mundo, assim, sem saber de onde viemos. E quando nosso conjunto ‘percepcional’ se interliga definitivamente, começamos a criar uma memória sobre o tempo corrente em que estamos; somos capazes de imaginar, sonhar, ou simplesmente achar que já sabíamos de certas coisas. É a sedução pela Idea de que somos de outro tempo, de outros mundos e que estamos ali, naquele espaço específico, por um motivo que ainda não sabemos, mas num dia qualquer revelar-se-á nossa missão. Ás vezes esse dia nunca chega e só ficamos velhos e decadentes.
Existem crianças que brincam o tempo todo, são ativas e só se sossegam à frente da TV. Eu, por vezes, ficava deitado com as pernas em movimentos, os braços girando como quem dirigia um carro imaginário e o crânio repousado no chão frio da varanda; eu ia longe com o pensamento, como se desprendesse o cérebro do corpo e a mente do sistema nervoso. Depois o corpo repousava e aceitava a frequência proposta pela mente. O corpo em repouso e a mente em movimento por sobre a parca história que eu conhecia.
Eu gostava de fechar os olhos e apertá-los com o indicador e o polegar de maneira simultânea. Então surgia uma série de raios coloridos, todos dançando de uma forma espiral, como se viessem do horizonte negro postado à minha frente. Era a forma como eu recebia energia do planeta do qual eu pertencia, era assim que me comunicava com meus ancestrais que nunca conheci. Por que eles haviam me mandado pra este planeta Terra? Tal resposta eu nunca encontrei. Ainda aperto os olhos, vez ou outra, e lá estão os raios intergalácticos.
Mas eu creio que essa minha possibilidade de viajar dentro da própria mente se deu graças aos desenhos animados com os quais eu me deliciava. A TV, criticada sempre, e eu sei que deve ser assim, prende a atenção da inocência se for recheada de desenhos, − gostamos de desenhar em folhas de papel, em paredes, por que na TV seria diferente?
Desenhos animados são frutos de uma magia pura, feita por mãos dedicadas ao movimento e à profundidade; há propostas narrativas em tempos truncados e orquestrações sonoras subliminares belíssimas. Basta assistir ao Papa-léguas e sua lógica surreal. O deserto, as maquinações dos personagens, a busca dantesca do coiote pelo sabor da carne daquela ave velocíssima. A possibilidade de se superar a física, a lógica, a gravidade, tudo organizado num mundo quântico do deserto do Mojave. E detalhe: há ainda o universo paralelo que faz entregas ao destemido caçador. Que moeda regula a relação entre aqueles dois mundos? Por que o coiote simplesmente não compra comida?
O mesmo choque de universos ocorria quando me chamavam para tomar banho pra ir à escola. Por que era preciso ser assim, tão sem sentido? Sair de uma dimensão para ir a uma outra tão maquinal e tão cheia de ofícios e caras azedas? Só deveríamos ter filhos se pudéssemos rir a toda hora, além de possuirmos uma existência sem angústia alguma. Vir para uma vida onde nada nos pertence e receber ‘estímulos’ a favor da elaboração de um processo de ‘autoformação’ que possibilite conquistas de bens matérias, ao mesmo tempo em que compreendemos que o mundo é perecível e transitório é, no mínimo, patológico. Sim, havia mais lógica no desenho do coiote e do papa-léguas.
O que sempre gostei dessa vida foi do tempo livre que alcancei para ficar comigo mesmo. Senão, como poderia escrever este conto inútil? Dedicar tempo e mais tempo para a formação de um ‘eu’ que agrade aos homens de negócios, aos gerentes dos templos, à classe política e aos familiares que nos rodeiam, que sempre nos querem próximos desde que não os incomodemos financeiramente, mas em contrapartida sempre desejam que façamos exatamente aquilo que eles pensam ser o certo ‘a se fazer vida’, me parece ser a construção masoquista de um Judas Iscariotes que atuará contra si mesmo nesse mundo, que afinal, não é posse de ninguém.
                          


      

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

As primeiras horas do dia - bonus track II



Não me lembro direito o nome dele, acho que era Alírio, ou Alípio, não sei ao certo. Era um sacristão. Ele aparecia na rua de minha casa em meio as brincadeiras de pique-esconde, ou de um jogo emocionante de bola. Ficava sentado num canto e quando a gente parava, ele se aproximava e começava a falar. Uns diziam que ele era louco. Mas é fato que contava histórias de uma maneira bem interessante. Um dia nos sentamos na beira da calçada e ele desfiou um rosário de histórias. Todas bíblicas. Sem saber, eu fora apresentado à mitologia judaica por ele.
Ele fazia as vozes dos personagens, inseria pausas, sabia se aproveitar do suspense e sempre que acabava uma delas, vinha com um discurso pedagógico sobre como era perigoso se afastar de Deus. Seu acervo de causos era sobre o Antigo Testamento. Foi através dele que vim a fazer primeira comunhão. Essa era sua missão, só depois descobri. Ele saia a esmo pelas ruas e quando encontrava uma molecada em paganismo profundo, se aproximava, fazia a amizade, contava suas histórias, mostrava o quanto era perigoso o inferno e, depois que percebia que molecada havia mordido a isca, oferecia um curso de catequese para que todos pudessem ser inseridos na casa de Deus. Repetia que só ia ao Pai quem seguisse os passos do Cristo.
Acabei fazendo o curso e a própria primeira comunhão. Confessei, como pecado capital, que havia roubado de um colega da rua, bem mais novo do que eu, uma chapinha de refrigerante com a figura do Senhor Smith, nº 36, assistente do Capitão Gancho, da coleção dos personagens Disney nas tampinhas de coca-cola.  
A missa em que fui ungido com o sinal da cruz, através do pão, foi singela. Usei uma calça verde e uma camisa branca de mangas compridas. Os cabelos devidamente penteados como se a vaca os tivesse lambido com toda sua eficiência; nos pés o meu glorioso ‘quixute’, um tênis preto que imitava uma chuteira de futebol. Esquisito, mas fora através da conversa com um estranho que adentrei na Igreja. À época, meus pais, acho, vivam uma crise espiritual que oscilava entre o catolicismo e uma série de vertentes do espiritismo. Talvez por isso não disseram nada sobre minha escolha.
Findada a missa, fomos pra casa de minha avó, uma central Católica miniera em pleno território do Vale do Paraíba. Serviu-se café com bolinhos e alguns tios, irmãos de minha mãe, estavam presentes. Um deles resolveu me perguntar o que eu havia sentido na hora em tomei a hóstia. Eu não havia sentido nada de especial. Parecia uma bolacha sem tempero. Mas eu sabia que não poderia dizer isso, então menti. Disse que tinha sentido uma sensação de leveza, de purificação. Ele balançou afirmativamente a cabeça e disse que eu fora bem preparado.
Nunca mais o vi o contador de história bíblicas. Após cumprir sua missão, sumiu. Eu voltei para as brincadeiras de rua e o tempo passou. Meus amigos, a maioria deles, era de ‘crentes’, os evangélicos de hoje. Me lembro de como tentei convencer um deles a ir ao cinema para que pudéssemos assistir Guerra nas Estrelas, algo que ele, nem ninguém no mundo, deveria perder. Claro, ele não foi, sua religião não permitia. E por final, eu quase perdi o filme.
Guerra nas Estrelas se trata de uma grande jornada, Joseph Campbell, maior mitólogo do mundo, foi um grande fã de toda a série. Quando chegou minha vez de ir ao cinema, meus pais tinham um casamento par ir. Fui deixado na casa de uma tia, que ficava ainda mais longe do cinema do que minha casa. Mas eu tinha que ir. Fui à sessão das 18hs00, era num sábado. Praticamente cruzei a cidade sozinho; eu tinha 11 anos. Passei por lugares que jamais imaginaria que pudesse estar, e tudo por um filme. 
Diante da tela, fiquei boquiaberto, fora purificado, fora inserido no mundo dos heróis e aquele universo profundo, com suas galáxias, mais poder maquinal de Lord Vader enfrentado pela coragem de Luke Skywalker, deram sentido ao meu espírito. - Luke Andarilho das Estrelas e seus amigos da Resistência, e eu, que num toque de mágica, havia me transformado num deles. Lutaria contra o Império do Mal o resto de minha vida
Claro, o cinema era a uma nova religião e pouca gente se dava conta do fato. E isso foi em 1977. 

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

As primeiras horas do dia - bonus track I

Eu me sentia bem comigo mesmo, apesar de tudo, quando completei 10 anos. Já tinha sentido a primeira invasão da sociedade em minha vida, apesar de não ter, à época, noção alguma disso. – É fato que a família começa bem antes com a mesma metodologia. Bem, tudo começou quando ia completar 7 anos e me disseram que eu teria que ir para a escola. Então perdi uma parte do dia, as tardes, que até então eram eternidades livres. Elas não seriam mais minhas. Foi uma longa pena de 4 anos e cumprida com certa resignação ao longo do curso primário. Quando completei então os 10 anos, ao contrário, não estava livre, tinha mais pena a cumprir, só que agora no ginásio, mais 4 anos. 
Com 11 anos, obrigatoriamente, toda criança deveria ir para o ginásio, hoje chamado de ensino fundamental. Trocaram meu uniforme e me disseram que agora meu horário de estudo seria na parte da manhã. Era cruel. Levantar quase que na mesma hora que o sol, que para os gregos antigos era um deus. Um deus é poderoso, um menino, não. Me sentia preso e exilado da frugalidade das horas, do possibilidade de poder ficar comigo mesmo pela manhã, em profunda paixão com o ato de não fazer coisa alguma.
Preciso retornar um pouco no tempo e dizer que tinha um avesso natural aos compromissos. Os pais, de um modo geral, nunca entendem isso porque buscam nos filhos o certificado da normalidade que os olhares alheios vão atestar em nós. Se disserem que somos normais, tudo estará certo sob o céu. O contrário é sinônimo de trágico, caótico. Dessa forma, quando ainda era um pós-bebê, uns 4 anos, quero dizer, e era retirado de meus brinquedos para participar de algum compromisso, sentia uma aflição profunda. Um exemplo: eu chorava na igreja, nos braços de meu pai. Não entendia por que tinha que frequentar um lugar tão chato. – Até hoje não entendi.
Mas a sociedade vai nos torturando lentamente através de nossos pais e quando damos conta, já estamos acostumados a participar de compromissos sociais desnecessários, vazios e insípidos. E foi assim que iniciei o ginásio, sem a minha opinião prévia sobre o fato, sobre o desenrolar da ação em si mesma, o qual eu era protagonista.
No meio do curso do ginásio eu ainda era avesso ao que se ensinava na escola. Tanta vida fora da sala e eu ali, em meio a uma organização semi-militarizada, uniformizada, com pessoas de discursos intransigentes, especialistas em dizer ‘não!’. Hoje entendo que o mundo é construído em cima da destruição de nossos desejos lúdicos. A vida é só um mergulho dos anjos decaídos na condição animal terrestre. Mas eu fui salvo, pelo menos parcialmente, pela música. Já que estava na chuva, molhar-se poderia ser divertido. Conheci colegas que falavam de uma música diferente da que eu ouvia em casa. Depois de tantas histórias acabei procurando no rádio.
Era o ano de 1979. A música mais tocada era de um grupo chamado Queen. Chamava-se, Love of my life. Uma execução ao vivo, somente uma voz e um violão. Minha vida então começou a mudar. Aquela voz vinha de um outro mundo, o violão era perfeito, o publico cantando era de dar arrepios. O resultado: pedi de aniversário um disco da banda. Ele chegou embrulhado com papel de presente das ‘Lojas Diniz’. Abri a tampa do aparelho de som, um Grunding, que era fabricado em Cruzeiro, veja só, e coloquei na pick-up um LP chamado, A nigth at the opera, gravado em 1975.  – Anos mais tarde esse disco Queen seria premiado como a melhor gravação analógica de todos os tempos. Ouço o LP até hoje, seja em vinil, CD, DVD, You Tube.
A primeira coisa que desejei fazer após ouvir esse disco foi montar uma banda e tocar como eles para poder beijar as garotas do mundo. Meus sonhos eram simples. Um disco fez por mim mais que todo o sistema educacional brasileiro, em tempos de ditadura. Mas ainda tinha muita coisa por vir, muita música a ser descoberta. Um dia me disseram, “Já ouviu uma música chamada stairway to heaven, do Led Zeppelin?”. Bem, isso merece outro texto.   
    Meus primeiros beijos em minha namorada foram embalados pelos acordes de love of my life; no outro vídeo, Breakthru, uma música de 1987. Detalhe: uma banda nunca pode deixar de ser adolescente. Mesmo que você tenha o vírus da AIDS no corpo, a vida continua e você deve querer gravar um clip sobre um trem, assim, numa bela manhã, enquanto as outras pessoas trabalham.  
    
    

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

As vozes dos ossos


Havia o sol por entre as frestas de milhares de folhas da árvore e eu, sedentariamente, me deleitava com o violão sob a dança dos fractais na luz que permeava os galhos, mas eis que minha palheta caiu. Estiquei meu braço para buscá-la ao chão. Senti, naquele glorioso esforço de me abaixar, que todos os meus ossos estalaram. O couro cabeludo deslizou pelo crânio numa incômoda sensação. Eu era aquela estrutura óssea que permitia ‘meu-ser-ser-eu’. Sim, assim mesmo: ‘meu-ser-ser-eu’.
Sem os ossos o movimento seria de projeção plástica, águas vivas na atmosfera. E assim, diante do que afinal não somos, − e só na ficção se possibilita existir esse tal não-ser −, é que posso tentar entender o que sou, de fato, nessa contingente condição humana. Como habitante dessa ladeira em que avançamos sem piedade, onde a ironia pode confortar, ou uma trilha sonora qualquer de um filme tem a força para serenar a angústia, sei que inevitavelmente a palheta irá cair de novo e os ossos estalarão numa performance apoteótica aguardada pelo futuro. Mas estarei cheio de esperanças à buscá-la como quem deseja resgatar Helena de Tróia do sequetro desse Cronos maldito que berra pelo fim de minha carcaça. Os ossos sabem que não têm todo tempo do mundo e eles estão dentro de nós, no meio de nós.
‘É osso’, por demais, às vezes, entender o papel das almas corpóreas e ossificadas daqueles que nos rodeiam voluntariamente, ou involuntariamente. Ao buscarmos a compreensão do que são as pessoas em nossas vidas, quando associadas ao sentido de que poderão preencher os vazios intra-corpóreos angustiantes da solidão, desencadear-se-á de forma inevitável a tradicional demanda pela produção das fábricas (grupos sociais) de nós e novelos. Uma produção dedicada às vidas protagonizadas por magníficos imbróglios, onde tudo sempre vai piorar, quanto mais tempo estivermos face a face com essas outras faces que nos prometem a supressão das lacunas entre o mundo e a razão. É o eterno fetiche por um escape.
Quanto mais gente precisarmos contatar, conhecer, menos saberemos sobre nós mesmos; eis que ficaremos ainda mais perdidos em nosso labirinto egocêntrico. E seremos seduzidos a pensar que as estrelas desejam nossa felicidade. No cemitério só há ossos e/ou pó e as estrelas, no céu, não dizem nada, nem ao menos um ‘parabéns pra você nessa data querida’. Somos um pacote de possibilidades de enganos e desastres tragicômicos. É só isso que armazenamos no contato que fazemos uns com os outros. Seremos sempre superficiais/conflituosos quanto mais precisarmos de pessoas para dar significados às nossas vidas. É que elas são, essencialmente, reações, frutos dos mesmos enigmas físicos/metafísicos que agem sobre todos nós. 
 Todo ser humano é dotado e de uma eficiente capacidade de desconhecer profundamente o céu e a Terra. Mas data vênia, ninguém pode negar que temos uma contínua percepção da constante mortificação de tudo que nos cerca, pra isso basta o espelho; sobre esse reflexo não há como mentir. Mas tal desconhecimento do todo é supostamente vencido com a idealização de pessoas que estariam num nível superior, e que têm a solução para a confusão geral que nos abarca do nascimento ao túmulo. Eis a falácia sublime, pois no fundo são só mais uma camada da ilusão e não podem vencê-la com ideias que nascem dentro delas mesmas. Pense: como um vírus pode encontrar a cura dele mesmo e transferir isso aos outros iguais e assim dar sentido ao 'universo' em que vivem?   
      As tais pessoas eleitas como superiores, os tais vírus iluminados, não viram deus algum, menos ainda sabem dos mistérios do universo; nem fizeram qualquer contato imediato do 3º grau. Apenas se chaparam mais do que nós, ou leram mais do que a maioria e isso é a melhor maneira de forjar mentiras universais. ‘Tudo é’ a constante dança dos nós, embaraçamentos e embrulhos. C’est la vie. Tudo é cerebral. Mas é o coração que nos deixa sedentos por um sentido no enredo que desejamos representar.
Buda, ao se ver iluminado, berrou ao tempo e aos ossos uma toada de desapego no formato de uma ereção: “Eu quero me libertar!”. E fez-se assim uma emigração dos seres intracranianos que compunham o ser que ele acreditava ser e ter em mãos. Em analogia, expulsos pelo pacote de medidas de contenção fiscal imposta pela ausência de desejos. Ou melhor: uma Sursis deliberada a partes de si mesmo que o incomodavam a ponto dele mesmo compreender que, aqueles, não faziam parte dele. Cada desejo tem uma face, é um ser, é um outro algo que respira e nos condena à prática do arrastão acadêmico da formação curricular para que cheguemos ao topo do mundo irreal em que vivemos.
Mas no Nirvana só cabe um ‘EU’; um ‘EU’ que é ao mesmo tempo livre e ninguém por excelência. Magnificência multicor branca, tridimensionalidade vazia nadificadora.  Dentro do ‘EU’, abaixo dessa ‘páia’ que embrulha o fumo, tudo o que foi armazenado pelo tempo deve ser jogado fora. Buda tornou-se novo e livre a partir do instante que passou a ser um ninguém sem passado. Pobre deus Brahma com suas milhões de faces, suas memórias serão infinitos relatórios.
Tenho uma pequena confissão: é certo que nunca me ajoelhei pra nenhum deus. Não posso vir a fazer algo que o transforme num catalisador da abjeta lamúria humana. Que deus nunca nos perdoe! Somos humanos e precisamos matar essa legião de nós emaranhados no peito, essa chuva de vaidade no sertão das ervas medicinais.  
E a propósito, não há remédio para a vaidade. Até deus é vaidoso. Quando terminou de criar o mundo, viu que tudo era bonito e então apaixonou por si mesmo e ficou deveras excitado. Se masturbou e ejaculou galáxias, imortalidades e mitologias. Nunca mais parou de gozar, de se gozar e de nos gozar. Enquanto isso vamos rezando, sofrendo, querendo dizer a ele que somos dignos de piedade. Mas ele só tem ouvidos para o sorrir e o dançar no picadeiro do circo em que usa seu nariz vermelho. Belíssima ficção a que ele criou. Afinal, é através de nossas obras de artes, delírios e imbecilidades que ele conhecerá a si mesmo de maneira integral e inequívoca.   


Indico aos bons e valentes leitores desse blog 
que assistam o filme, Nebraska.   

quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

Charlie Hebdo

[...]     
 ........o jornal segue a tradição de um jornalismo francês extremamente crítico, que remonta à imprensa que denunciava os excessos de Maria Antonieta no período pré-Revolução Francesa. E, se no século XVIII, o alvo era a família real e a corrupção na corte em Versalhes, a mira do “Charlie Hebdo”, hoje, está voltada para políticos, banqueiros e líderes religiosos.

  Com tom irreverente, o jornal costuma publicar críticas à extrema direita e ao fundamentalismo religioso, seja o islâmico, o católico ou o judeu. O ponto de vista da revista reflete “todo o pluralismo da esquerda, e até mesmo os abstêmios”, como disse o editor Stephane Charbonnier, conhecido como “Charb”, em entrevista ao jornal suíço “Le Courrier”, em 2010.




















O Islamismo cria o pior dos cancros porque é recheado de intolerância, violência, fanatismo e rasteja na lama mais abjeta que se pode conhecer: matar em nome de uma religião arcaica, machista e fadada a mergulhar na própria loucura.  No Islamismo o homem é ainda uma larva, um micróbio, um ser rastejante, longe de alcançar a dignidade que lhe é inerente. Que Darwin nos perdoe. 



...Wolinski, Stephane Charbonnier, o "Charb"; Jean Cabut, o "Cabu"; e Tignous.

+ 07/01/15...mortos pelas mãos terroristas de Maomé... 
   

terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Casulo, túmulo, ovo, catacumba... Gênesis



             Encharquei o sangue de vinho.
A escada me levou ao sol etílico.
Passei nuvens de pernas lisas.
O mar se partiu em faixas de som.

Encharcado de vinho o cipreste e liso.
Sinto o calor feliz humanidade.
O vinho é a chama da boca santa. 

As mãos tocam o sino da alegria clara.
Riachos conduzem memórias fluidas.
Olhos faiscando luz luxuriante de ternura
É o vinho na projeção metafísica de mim mesmo.


Sou a procissão de Baco nas terras barrocas.
Larva em pó retirante. Eu, filho do porre!
No ‘inverno-verão-me-carnaval’.
Totem bailarino em meio ao salão de ninfas.

Olho no globo de isopor os estilhaços de sua alma,
se dissolvem luminosas nos fractais espelhados.
Te amei um dia!

Sou um Jonas nas entranhas do trovão.
Pássaro velejador de elétrica nuvem.
Eu, beer topographic clown - sombra & luz.












sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

Kalimba - neolithic jazz

E se fôssemos fundo na noite, nas alucinações dos tambores,
nas vozes das florestas, 
seres que mergulharam numa escuridão sem fim,
no hálito das árvores, nos olhos pássaros do breu?

deus nenhum dorme no fundo do limo da curva do rio,
há os olhos daqueles que espiam o que não são,
os passos da lua no firmamento carregado de pedras brilhantes,
a rave neolítica dos degradados filhos de ninguém,
as almas macunaímas que se deitam pra ver o céu girar,
peregrinos do limbo, do limbo ao vazio dos sentidos.

os escuros profundos diante dos olhos são nossas cabeças por dentro,
nossas mentes, a dança das noites em que nos perdemos ao encontrarmos a primeira clareira de pedras pré-humanas.

a voz de Iara num eco sobre as cores da mata.
as cores se projetam em sons de pássaros,
mariposas de pedras preciosas,
esmeraldas que fumaremos amanhã,
entre as pernas de Iracema.

e se de tão perdidos na densa mata noturna,
chapados de olhos vermelhos,
sacis e outros demônios,
entendêssemos que ali estávamos ao sol do meio dia?

 
Kalimba, do LP, Sol do meio dia, Egberto Gismonti - ouvia isso num passado distante, quando ainda não tinha nenhum fio de cabelo branco. Boa maneira de se começar o ano. flz 2015.