quinta-feira, 30 de abril de 2015

O outono verde claro



           A palheta pálida e pastel do outono combina comigo. A frequência sincopada das coisas, o vento, o sol na medida certa, nenhum escândalo luminoso, menos ainda uma apologia à escuridão; e o dente-de-leão suporta o vento e a garoa. Escuto as vozes dos mortos num túnel de eletricidade dentro de meu cérebro. São só enzimas, eu sei, mas me dizem que eu preciso deixar de pensar nas coisas, porque coisas são só coisas. Sei perfeitamente que é um conselho inútil. Os mortos somos todos nós amanhã. Por que seríamos confiáveis a ponto de aconselharmos corretamente quem está docemente perdido na vida?
Não, não me encontrarei pra que possa me conhecer melhor. Isso seria trágico por demais. Estou indo mais à frente de mim mesmo pelo caminho para avisar aos outros que não virá mais ninguém. Se persistirem em “quem está vindo?”. Responderei que, “ Entendam, ninguém me segue! Nem eu mesmo me sigo”.
Nietzsche, quando entrou na Capela Sistina, viu a beleza outonal dos desenhos de Miguelangelo, o cristianismo mais pagão do mundo; ele entendeu o que disse o artista: nenhuma teologia ou metafísica podem se manter sobre corpos tão alheios ao todo. As peles de palidez rosáceas leves dançando diante dos pecados trancafiados nos corpos dos patéticos fiéis que a tudo julgam, comungam e se penitenciam, são um chamado do outono. Aquele que souber ouvir, que ouça o outono pálido de Miguelangelo.
Tudo se dissolve na impressão dos desenhos do outono. O verde do campo é céu também, onde a linha do horizonte derrete tudo. Olhar o mundo através de um copo de champanhe, ou de vinho rose. o aroma do pão de queijo demora mais no ar, forma pássaros, castelos, terras ermas, olhos de duendes sagazes. A densidade do cappuccino é um confortável paraíso vesperal que se espera alcançar todos os dias.
À noite, a lua crescente ilustra a diáspora das nuvens que interpretam o tempo, uma bela peça de teatro encenada no céu. Quanto mais as vemos correr, voar, saberemos que a morte está por vir. Ela baterá à porta e estaremos ouvindo música, olhando as nuvens. Mas se ela souber que a canção de inverno ainda não foi feita, ela se sentará placidamente à mesa com a sopa da noite servida e dirá que anda pensando seriamente em cometer um suicídio para se transformar em algo humano. A morte, quando morrer, seu espírito há de se transformar num homem que toca violão e canta pra lua, e que jamais desejará matar alguém.
Posso me sentir mal, me sentir bem, afinal a roda da vida é como o moinho de vento de Van Gogh que ilustra bem a paisagem e suporta o sol, o vento, a noite e a chuva. Gosto de olhar o regato que segue ao meu lado. Vou escrever os nomes das melhores pessoas do mundo no corpo do rio, uma escultura efêmera, um deixar fluir pelo mundo para que se sintam livres. Vou dançar um rock pelas almas que ainda sonham com mundo melhores, com aqueles que caem nas calçadas com a alma lotada de cachaça. Vamos seguindo, olhando em frente, sabendo que os olhos não nos enganam, menos ainda o outono com sua palheta em tons pastéis.        
   

   

segunda-feira, 27 de abril de 2015

The song remains the same

O que não sabemos, afinal, dessa vida? Do começo, do meio e do fim, de resto, nada nos é estranho. O escuro da noite nos acalma, a luz cega os miseráveis e degradados filhos do sonho. Por que a ideia de que há um pai no céu me é indiferente? E nas poucas vezes que disse que amava alguém, nunca sequer pensei em algo transcendente. Mas o vento se vai e a cretinice dos que nos rodeia permanece. O trem clama pelo o homem velho e ele há de cruzar o deserto, minha eterna morada, a salvação em meio ao silêncio das criaturas, onde os fantasmas estão expostos ao próprio sofrimento.
E que venha o sol, de quem guardo um profundo pesar. Não posso dizer o que penso à luz do sol, seria assim uma profunda heresia despudorada, mas vamos tentar! Explicar, analisar, parece um desejo de querer parar o viver para contar o tempo e dizê-lo quântico, o que seria uma morte anunciada pela ânsia de não querer ser. Posso pensar que estou sempre indo e que não haverá ninguém pra me dizer o que devo fazer.
E se fizéssemos nossos cigarros nos textos sagrados? A fumaça seria benta, seríamos absolvidos da vida por algo metafísico, escrito com muita força de vontade e pouca inspiração. Deus, por que não toma uma cachaça? Por que não canta ao violão? Por que não se encanta por uma ninfa? Elas são lindas, traiçoeiras e nos abandonam sem vergonha alguma, e fica aquela sensação de que não há outra coisa a ser feita, pois o mundo todo é um viver triturado por uma constante despedida que não se acaba.
Vejo a imagem impressa na névoa, o corpo nu desenhado na áurea manhã dos dias descompromissados, o pão silencioso sobre a toalha da mesa, o desejo de dizer coisas que param o mundo e que não há nada pra fora do mundo, a casa é o mundo. Resplandece uma vontade de chorar, é que o corpo não consegue mais acompanhar as piruetas dos versos. E se eu dissesse seu nome por horas afora, um mantra, você apareceria pra mim como se fosse uma deusa e me amamentaria com o sabor de suas vísceras, com o aroma de seus desejos e ainda poderia dizer que me ama, mesmo que nunca tivesse sido verdade?
As janelas da casa se abrem prum imenso descampado verde. Até no mais longínquo horizonte há uma ausência de árvores, nenhum anjo com o fruto da queda em suas mãos procura por mim. Eu queria ir mais a fundo e arar a terra e saber dos vermes que ressuscitam os corpos mortos, saber, pelos olhos, que amar é como morrer para a canalhice do mundo. Um mundo obtuso, feito de parafina, plástico, ofício e sorrisos falsos. – Os medíocres clamam pelo meu fim.
O jantar numa praça árcade, meus pés pisam papéis de chicletes falsos. O vento é santo, santo, santo e é livre de todos os nós e apenas às velas dá significado. O mar, o mar, o mar e o penhasco de Gibraltar. César, Pessoa, quem disse que navegar é preciso? Só a estrada nos abençoa, nos purifica, redime, nesse turbilhão de céu vazio. Seguimos em frente, assim, sem medo, apenas o sol nos impede, às vezes, de dizer coisas do fundo do peito. A Terra é azul, e tudo permanece o mesmo de sempre. Melhor escrever canções. 
Olho pro oeste, a noite vem, um vulto cinza e negro temperado à necessidade de entender que não há morada possível no giro enfático da terra. Os tambores soam ao longe, preciso dizer num dia desses, em pleno sol, que tudo é passageiro, mas que enquanto rola no sangue, há estragos. Preciso brindar com Bukowsky, alguém que soube morrer com dignidade.




domingo, 19 de abril de 2015

A lua, o sereno e o pinho

Prefiro o corpo da mulher nua a qualquer ideologia, religião ou arte. Prefiro o ócio à labuta. Desejo a inércia enquanto o planeta descreve sua trajetória na busca pela catástrofe. Dedicar-me-ei ao nada para mostrar meu parco amor a ti, oh! Gaia, que agora és a dona de minha não ação, enfim.
Penso mais nas árvores do que em Deus. Quantas não foram sacrificadas, transformadas em papel para que se escrevesse, numa ode à banalidade, que era preciso amar ao ser perfeito sobre todas as coisas e muito pouco a natureza (?). Que tamanha vaidade é essa que deseja palavras de veneração, bajulação, enaltecimento impressas em papel por seres tão insignificantes, vulgares e descartáveis como nós?
Desejo a sombra solitária, o canto do regato, o azul sereno das montanhas distantes. Amo a terra forjada pela explosão dos vários fogos em suas entranhas e também o sol, esse deus impiedoso e democrático que jorra luz aos quatro cantos e me aquece os ossos, amadurece a uva, fermenta o vinho  − a morada dos deuses − e ainda é o astro que dá sentido à cerveja gelada, ao banho de rio, à nudez dos corpos.
Quero esculpir silêncios. Antídotos às mazelas exaladas pelas bocas da mediocridade teológico-capitalista-digital. Sonho uma poesia visceral que ilumine os recantos do espírito humano e que o bolor, no qual se prolifera o fascismo que reduz a condição humana ao rastejar das quatro patas, pulverize-se nas centelhas dos bosques, onde as ninfas servem o vinho santo aos ateus e aos ‘atoas’, seres mergulhados nos acordes lunares de Debussy.
Que os homens silenciem dentro das canções, não há mais o que dizer. Chega de lamúria, preciso de um acorde que me faça viver a doce manhã que toquei com as pontas dos dedos, quando o vendaval racional cessou por alguns segundos, ou se esqueceu de mim, não sei. Ofereço meu violão em sacrifício pela lua e que assim, como a um sacerdote pagão que persegue a uma dádiva, a mim seja permitido sentir os lábios da maça fresca e despudorada mais uma vez. Depois vagarei pelo deserto, como se fosse eu o beduíno que busca o solo mais sagrado para se deitar e morrer ao lado do amor que escolheu. 


       

quarta-feira, 15 de abril de 2015

A Roda da Fortuna girou mais uma vez...

...e o grande Nada ao nosso redor ficou mais forte, mais bem habitado. Adeus Eduardo Galeano, adeus Gunter Grass.




Vozes da morte - Augusto dos Anjos

Agora, sim! Vamos morrer, reunidos,
Tamarindo de minha desventura,
Tu, com o envelhecimento da nervura,
Eu, com o envelhecimento dos tecidos!
Ah! Esta noite é a noite dos Vencidos!
é a podridão, meu velho! é essa futura
ultra-fatalidade de ossatura,
a que nos acharemos reduzidos!
Não morrerão, porém, tuas sementes!
E assim, para o Futuro, em diferentes
Florestas, vales, selvas, glebas, trilhos,
Na multiplicidade dos teus ramos,
Pelo muito que em vida nos amamos,
Depois da morte, inda teremos filhos

Galeano e Grass: + abril de 2015

PS: todo velório tem uma trilha. Bem, lá vai!